Conte sua história › MARILIA KUBOTA › Minha história
Nasci na cidade de Paranaguá, litoral do Paraná, no dia 06 de abril de 1964. A data , para mim, que sou jornalista, é marcante. Seis dias antes os militares haviam dado um golpe de estado no Brasil, depondo o presidente João Goulart. Os militares desconfiavam que Jango, como era conhecido o presidente, seguia a cartilha do comunismo. Por 20 anos o pais em que meus avós aportaram, nos anos 30, mergulhou numa ditadura negra.
Minha família, porém, nada sabia de questões políticas e até as temia. Na maternidade, minha mãe, Tizuru (que em japonês significa pequeno pardal) , apenas aguardava com expectativa o nascimento da primeira filha mulher.
Minha avó materna veio de São Paulo, onde morava e ficou me esperando durante um mês.Como eu não nascia, foi embora. Meu avô paterno morava em Paranaguá e foi ele quem me batizou Marilia. Homenagem a uma cidade do interior de São Paulo, em que a família dele morou, antes de mudar para o norte do Paraná e descer para o sul do estado, nos anos 60.
Meu nome japonês, Aiko, foi dado pela minha mãe. Também prestando homenagem, esta a uma parente japonesa. Em japonês, meu nome significa “Pequeno Amor”. Anos mais tarde soube que na época de minha avó as mulheres não podiam usar a partícula ko (em japonês, um ideograma que significa diminutivo ) em seus nomes. Esta partícula era um privilégio da nobreza. Por isto, minha bisavó se chamava Massa e minha avó, Miya – se não tivesse havido a interdição, seus nomes seriam Massako e Miyako. Um detalhe: como no Japão quase tudo é ao contrário, os nomes das mulheres terminam em O ou E (Aiko, Mitiko, Yoshie, Toshie) e o dos homens, em A (Akira, Toshya,).
Durante anos não soube disto e achava feio meu nome japonês. Aliás, não gostava de ser chamada “japonesa” na escola. Os meninos costumavam cantarolar, brincando:
“Japonês de cara chata, come queijo com barata.”
Eu chorava, achava que ser japonês era a pior coisa do mundo. Na família só me chamavam Aiko. Na escola, Marilia. Ter um nome brasileiro e outro japonês é uma tradição entre os nissei (filhos de japoneses nascidos fora do Japão Ni é segunda, Sei, geração, ) e sansei (netos de japoneses san, terceira e sei, geração). Meus pais, que só tinham nome em japonês em criança (Tizuru ou Tizu, como chamava a familia dela e Satoru), adotaram um nome ocidental, quando foram batizados na Igreja Católica.
Minha mãe foi batizada como “Rosa” e meu pai, “Jorge”. Meu pai criou este nome brasileiro para se casar com a minha mãe. Ninguém nunca o chamou assim. Minha mãe, até hoje é chamada de Dona Rosa. Aliás, estes nomes – Rosa e Alice , para as mulheres, Jorge e Mario, para os homens, são muito comuns entre os nissei.
Tudo isto fui descobrindo enquanto crescia. Quando eu tinha seis anos, ganhei, num aniversário comemorado na escola, um livro chamado “Patinho Feio”, uma fábula recontada por Andersen. Duas novidades - a festa de aniversário (minha família nunca comemorou – não porque não gostassem de mim, mas isto também só descobri mais tarde – a forma como os japoneses e nikkei expressam o amor) e a descoberta da paixão pela leitura.
Achei triste a história do “Patinho Feio”, mas ao mesmo tempo bonita porque no final se transforma em cisne. Na escola descobri a literatura e, uma vez, escrevi um poema sobre uma rosa. A professora gostou e disse que eu era “poeta”. Na época achei que ser poeta era algo como ser japonês. Tinha algo de “Patinho Feio”.
Mais tarde, na antologia escolar, descobri um escritor que achei maravilhoso, por ser muito engraçado: Millor Fernandes. A professora da quinta serie pediu que escolhêssemos um texto para ler. Ela gostava de um poema de Manuel Bandeira (“O Bicho”). Escolhi “A Morte da Tartaruga”, uma crônica de humor negro de Milllor. Fiquei envergonhada por ter escolhido a crônica dele. As meninas mais bonitas da sala escolheram poesia. Durante muito tempo eu relacionaria poesia e “Patinho Feio”.
Na infância era terrivelmente tímida e fui uma adolescente desastrada. Isto me levou a gostar mais e mais de ler. Aos treze anos conheci outra escritora que seria minha companheira de juventude Clarice Lispector. A crônica publicada na antologia era “O Ato Gratuito”. Não entendia o que ela escrevia, mas era mais bonito que Manuel Bandeira.
Aos quatorze anos vim para Curitiba e conheci a Biblioteca Pública do Paraná. Nesta época era apaixonada pela leitura de crônicas. Adorava a coleção “Para Gostar de Ler”, da Editora Atica e através de quatro escritores – Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos tive acesso a um mundo vastíssimo de sensações. Na biblioteca eu procurava livros destes autores. Li todos os livros disponíveis de Drummond e comecei a me interessar por poesia. Ao mesmo tempo continuava gostando de crônicas e compartilhava leituras de livros “engraçados” com minha irmã. Os cronistas engraçadinhos de minha época eram Carlos Eduardo Novaes, Leon Eliachar, além do imbatível Millor Fernandes.
Também gostava de ler revistas em quadrinhos. Por isto, algum tempo depois de um estágio com Mônica, Cebolinha, Tio Patinhas, Pato Donald, Luluzinha e Bolinha, fiquei encantada com as personagens Graúna (do cartunista Henfil) e Mafalda (criada por Quino). Elas reuniam a graça infantil e um agudo senso critico sobre a realidade social.
Eu lia muito e como ainda tinha a”Síndrome do Patinho Feio”, achava que ler era uma ato “clandestino”, como diria Clarice Lispector. Meus avos, pais e irmãs não gostavam de ler. So minha avo Miya, que escrevia poesia japonesa – haicai e tanka. E meus tios, que moravam com ela, liam jornais, e livros complicados. Um deles era sócio do “Clube do Livro” e, quando eu ia a São Paulo, me aventurava em sua coleção. Lia “Romeu e Julieta”, de Shakespeare e depois, “Meu Pé de Laranja Lima”, de Jose Mauro de Vasconcellos.
Um pouco mais tarde tomei contato com uma serie publicada pela Abril. Apresentava grandes autores da Língua Portuguesa, de Machado de Assis a Caetano Veloso. Comprei toda a serie. Alem de livros, comecei a ler revistas jornalísticas e culturais.
Um dos meus tios me falou uma vez, que eu poderia ser jornalista, por causa de uma brincadeira. Eu e minha irmã fizemos um jornal com “noticias da família”. As noticias eram piadas sobre meus tios e minha avo. Fiquei com aquela sugestão de meu tio durante algum tempo. Quando prestasse vestibular eu escolheria Jornalismo.
Desde a adolescência eu gostava de escrever cartas. Minha mãe se espantava por eu receber cartas de Portugal, Espanha, Angola, Chile. Comecei a trocar cartas com uma prima que gostava de escrever poesias. Embora já fosse uma leitora adiantada de Drummond, Cecília Meirelles, Mario Quintana, fiquei espantada quando descobri que qualquer um podia escrever poesia. Comecei a rascunhar uns poemas. Não gostava deles e jogava fora.
Quando estava entrando na faculdade conheci a Feira do Poeta. Um lugar em Curitiba onde os poetas se reúnem, aos domingos de manhã. Ali entrei em contato com vários poetas, como Paulo Leminski, Alice Ruiz, Fernando Karl, Ricardo Corona e outros. Foi então que a literatura, definitivamente, passou a fazer parte de minha vida. Comecei a considerar o que escrevia como poesia. Contos meus foram publicados pela primeira vez no Jornal Nicolau, em 1991. Depois fui publicando em revistas, jornais, sites, antologias.
Nunca recebi prêmio importante. Publiquei apenas um livro artesanal só meu até agora. Há cerca de quatro anos comecei a participar e organizar eventos e publicações literárias. Organizei o “Concurso Nacional de Haicai Nempuku Sato”. Nunca escrevi haicais, mas realizei o concurso em homenagem a imigrantes japoneses, como meus avos. Também preparei , para as comemorações do Centenário da Imigração Japonesa ao Brasil, a antologia “Retratos Japoneses no Brasil”. O livro reúne crônicas e contos de autores nipo-brasileiros.
Hoje, além de trabalhar com projetos culturais, dou oficinas (aulas) de criação literária na Fundação Cultural de Curitiba. Gosto de repassar a paixão pela leitura aos escritores iniciantes. Estimulo os alunos a lerem, analisarem as obras lidas e escreverem. Acho que nem todos serão escritores. Mas podem ser melhores leitores. E ser um melhor leitor é ver o mundo com olhar novo. Talvez seja este olhar – curioso pelo original, o diferente – que me motive a buscar “as terras que inventei”, como diz o poeta Manuel Bandeira.
As opiniões emitidas nesta página são de responsabilidade do participante e não refletem necessariamente a opinião da Editora Abril
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil