Conte sua história › Sumire Sakabe › Minha história
Filha mais velha de filho mais velho de família japonesa. Não representa muito no universo sexista do Japão tradicional, ser filha não conta muito. Mas meu pai lia os protocolos do jeito dele. Embora tradicional em vários aspectos, se auto denominava “baiano” no gosto por farofa, toucinho e ovo frito e era, por vezes, de um ecletismo desconcertante. E se me deixava de fora quando ia consertar as bicicletas com meus irmãos ("coisa de menino"), me ensinou, de pequena, a ser valente.
Talvez isso, associado às nossas personalidades, fortes cada um a seu jeito, nos fizeram divergir vez por outra, especialmente na adolescência. Eu briguei com ele e comigo mesma, tentei me desviar da gravidade que me atraía e me recusei a querer ser médica como meu pai, o ortopedista Noboru Sakabe.
Meu pai fez o primário na escolinha nos arredores da fazenda onde meu avô não daltônico,Shiguekazu Sakabe, plantava café, no Paraná. Minha avó, Toshie (Miyazi) Sakabe, se mudaria para Lins, para que meu pai e seus sete irmãos continuassem estudando. Estudou medicina em Curitiba e especializou-se em São Paulo. Difícil fazer frente a um pai que fez tudo certo... assim, fazer birra era mais fácil. Mas fazer birra não se sustenta, e em pouco tempo abandonei o curso na Fundação Getúlio Vargas e dei o braço a torcer. Juntei-me ao time do meu pai, virei médica.
Meu palpiteiro pai ainda não entenderia bem minha opção por Infectologia, num tempo em que cuidar de pacientes com AIDS era ainda tarefa ingrata, engatinhando que estávamos no tratamento desta doença. Mas esta escolha foi sustentada por muitas razões. Entre elas um sonho do segundo ano da faculdade de um dia trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras (MSF). No meu entendimento, mais pessoas morriam de malária e tuberculose do que como resultado dos conflitos que acontecem nos lugares onde o MSF atua. Era, portanto razoável que eu me preparasse para brigar contra os assassinos em massa!
E em 2004 o sonho virou plano, depois projeto e enfim realidade. Passei um ano inteiro trabalhando no Sudão, tratando de tuberculose, malária, calazar, desnutrição (digo, fome).
Num país de poucas estradas, onde acessibilidade é um dos grandes entraves para que condições básicas de vida sejam garantidas, cheguei a Leer, Nuba Mountains e Malakal de avião - e o seco Sudão se estampa laranja na minha retina.
O MSF proporcionou a nós - médicos, enfermeiros, profissionais de logística de várias partes do mundo - condições de trabalho impensáveis nas situações em que nos encontrávamos. Sob tendas de lona e em enfermarias de palha, transfundimos sangue, fizemos exames de HIV, usamos medicamentos de alto custo, cuidando de doentes que sofriam de doenças que se não tratadas, são fatais. Praticamos medicina de alta qualidade em localidades remotas, com infra estrutura rudimentar. O MSF nos proporcionou também o conforto de trabalhar com uma organização que preza neutralidade e imparcialidade, o que possibilita prestar assistência médica junto a, mas não sob a tutela de qualquer facção política.
Tenho convicção de que mudamos o curso da vida de milhares de pessoas. Mudei também eu - algumas convicções ficaram ainda mais fortes, algumas necessidades se mostraram supérfulas, tive certeza de que a formação que recebi na Escola Paulista e na USP são de ponta, minha indignação foi canalizada em realização. E resumiu bem o meu pai, ainda sem entender direito essa filha tão parecida mas tão diferente de si mesmo: “bom, 'fia' , saber que você está fazendo essas coisas de que você gosta”.
Meu avô teve medo dos negros em Moçambique. Eu confesso que o olhar direto dos povos do Sudão, como os altivos Nuers e Dinkas, impõe respeito. Esta gente brava, que me ajudou a pendurar o soro no galho das árvores para que os pacientes tivesesem um pouco de sombra sob o sol escaldante e que trabalhou comigo à noite à luz de lanterna, que me ajudou a enveredar no universo dos doentes que falavam as línguas locais, os doentes que caminharam por dias com suas crianças nas costas até chegarem a nós - esta gente têm o meu respeito.
E herdo do meu avô um medo terrível que me remete à África e se estende a vários cantos deste mundo. Meu medo é de que a distância abissal entre o conforto da minha vida cheia de escolhas e a vida dos bravos sudaneses sem água limpa, sem comida, sem escola e sem escolha ainda demore muito a ser minimizada. A guerra que atrapalhou os planos dos meus antepassados acabou, o Japão se reconstruiu e recebe de volta os descendentes dos que emigraram para o Brasil. Não foi no entanto suficiente para que percebêssemos que a guerra separa famílias, mutila sonhos. Estava ainda no Sudão quando o acordo de paz acabando com a guerra de mais de vinte anos foi assinado. No entanto, entre assinar e acontecer existe um mundo. Darfur continua testemunhando barbaridades - digam o que disserem, se aquilo não for guerra, o dicionário precisa ser revisto.
Dói meu pai não ler este texto ou estar aqui para discutirmos meus próximos planos. Eu aprendia sempre com ele. Nós o perdemos para um linfoma avassalador às vésperas do último Natal. Como dizia no texto anterior, mesmo com tamanha perda, a vida é rara. Sinto-me compelida a seguir em frente. Assim me ensinou meu pai.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil