Conte sua história › Atílio José Avancini › Minha história
Fora dos domínios universitários, minha troca com a gente de Kyoto processou-se no mesmo eixo: assumir um olhar estrangeiro e uma vontade de conhecer. Pensando num ensaio fotográfico – a ser apresentado como livro e exposição fotográfica no Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, em agosto de 2008 – aproveitei os finais de semana e as férias escolares para exercitar o gênero fotografia de rua: flagrantes espontâneos de pessoas no espaço público.
Meu desejo de tirar boas fotos deu energia para ir adiante e chegar mais perto do homem de Kyoto. Como repórter, mergulhei na realidade urbana para extrair uma visão subjetiva do mundo. Quando reflito calmamente sobre algumas imagens, sinto que fui além dos limites de minha experiência. Eu sempre amei as cidades e seus cidadãos. E fotografar foi deixar a teoria de lado e partir em direção à prática. Conforme Henri Cartier-Bresson, “ver é um desfrute para o olho, deixando os pensamentos conceituais em repouso”.
Para um fotógrafo, a homogênea paisagem natural do Japão exerceu muito fascínio e descoberta, como a intersecção contrastante a cada estação do ano. Nas saídas fotográficas busquei um sentido investigativo e social nas fotos. Foquei especificamente o elemento humano inserido na cidade: luzes, sombras, formas, linhas, texturas, movimentos, emoções, comportamentos, gestos e olhares. Assim, os vários aspectos dos sentidos, alavancados pelo refinamento da cultura japonesa, puderam ser simultaneamente trabalhados.
Face a face com a vida de Kyoto, procurei revelar templos tombados, jardins secos, parques e rios, festas populares, jogos esportivos, banhos comunitários. Não por acaso, senti também a necessidade de escrever uma crônica mensal de eventos ou fenômenos da natureza na ordem em que eles se sucederam, como o Sakural (flor da cerejeira), em abril, o Kodomo no hi (dia da criança), em 5 de maio, o Aoi Matsuri (procissão com costumes aristocráticos da Era Heian), em 15 de maio, o Gion Matsuri (festival popular com carros alegóricos), em 17 de julho, o Daimonji (fogo para as almas ancestrais retornarem aos seus mundos), em 16 de agosto, o Jidai Matsuri (desfile da história do Japão da era Heian à era Meiji), em 22 de outubro, a Momiji (folha momiji), em novembro, o Setsubun (grande fogueira no templo Yoshida para trazer a boa sorte), em 3 de fevereiro.
Tais considerações dão uma idéia dos desafios que enfrenta um professor estrangeiro no Japão. Minha proposta pedagógica buscou minimizar o choque de olhares para o exercício do diálogo entre povos de culturas tão díspares. Afirma o educador R. Richterich: “Qualquer que seja o processo desenvolvido e as áreas exploradas pela pedagogia e didática das línguas estrangeiras, todos os esforços tendem sempre a um só objetivo: melhor ensinar para ajudar a melhor aprender”.
Como brasileiro, constatei que temos muita versatilidade para lidar com os desafios da vida e somos queridos no exterior. Não por acaso, o Brasil é o país que acolhe a maior colônia nipônica do mundo. Fica claro perceber o sentido – e a forma – que o Brasil tem como “país-coração”. Mas essa particularidade ainda não foi integralmente reconhecida e conscientizada por nossa gente. De volta a São Paulo, no primeiro final de semana motorizado, tive o desafeto de encontrar o carro de meu filho assaltado: levaram o som, três álbuns de fotografia do Japão e, incrível, o meu estimado violão.
Dia seguinte, na escola de música de uma amiga, senti que os melhores violões do mercado são japoneses. E aproveitei para agendar umas aulas de aprimoramento em bossa nova. Nada é por acaso e tudo é aprendizado. Certas culturas antigas reconheciam que o número de sentidos que temos a desenvolver poderia chegar a doze.
A KUFS – conhecida como Kyoto Gaidai – completa, em 2007, 60 anos de fundação e conta com 4800 alunos. A Habilitação em Português tem cerca de 280 alunos (70 por ano). O curso de Português tem duração de quatro anos e se iguala em procura com os de Espanhol, Chinês, Japonês, Francês, Alemão e Italiano. O destaque da KUFS, direcionada para o ensino de línguas estrangeiras, é o Inglês. Fui o primeiro professor desse convênio de 11 anos entre a USP e a KUFS. O convênio acolhe principalmente estudantes de graduação. A realização desses intercâmbios se ajusta às novas demandas de internacionalização e de modernização da USP.
O ensino no Japão se integrou às múltiplas forças sociais atuantes, que não só foram influentes nas opções no que diz respeito às condições pragmáticas em sala de aula como também determinaram comportamentos. Assim, a dinâmica pedagógica se processou num contexto educacional determinado pelas condições específicas do lugar, refletindo aspectos emocionais e intelectuais dessa comunidade, parte formadora de sua identidade.
Em Kyoto compartilhei um duplo deleite. O primeiro se efetivou nos momentos das aulas, buscando corresponder à expectativa dos estudantes japoneses de se aproximarem do modo de vida ocidental, sobretudo o brasileiro, visto como um povo descontraído, alegre, criativo e original. Reconheço, entretanto, que o interesse dos estudantes pelo Brasil veio dividido pela insegurança da perda da identidade japonesa. De fato, o contato da ilha Japão com estrangeiros sempre foi feito com muito cuidado e receio. Apesar da alta tecnologia reinante, uma característica básica dessa cultura, inclusive entre os jovens, é voltar-se para si na observação silenciosa do mundo exterior.
O segundo deleite foi unicamente pessoal, diante do desafio de residir na antiga capital Kyoto, envolta pela atmosfera tradicional do Japão. De certo modo, meu desejo de vivenciar o estilo de vida nipônico veio acompanhado pela busca de semelhanças e antagonismos entre a identidade japonesa e a brasileira. Não foi simples administrar o choque cultural de uma cultura amorosa e vital como a nossa para uma cultura também amorosa, mas mental como a deles. Sempre é bom ressaltar que somos humanos e não há cultura ou povo superior a outro. O homem é um em qualquer parte do planeta, independente de sua língua, crença, raça ou classe social.
Para enfrentar os desafios em sala de aula e na vida cotidiana de Kyoto,
lancei-me nas áreas da literatura, arte visual e música. O caminho da socialização da arte foi decisivo para que os alunos tomassem conhecimento da Cultura Brasileira e da Língua Portuguesa com criatividade e, simultaneamente, suavizar sua própria identidade cultural. Percebi também que para trabalhar com os estudantes era necessário conhecer o ambiente geográfico, histórico e simbólico de Kyoto.
De início, constatei algumas dificuldades conceituais por parte dos alunos como, por exemplo, buscar significados, formar opinião, realizar análises de conteúdo, fazer abstrações, perceber metáforas. Mas, uma vez no Oriente, aproveitei o estado natural de concentração, ordem, exatidão e resguardo. Assim, procurei trabalhar com o poder da atenção e da organização do pensamento em torno de uma idéia central.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil