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No segundo ano da faculdade, conheci Natércia – ela era prima de uma das estudantes do curso de obstetrícia — em um bailinho do tipo ‘asma’, isto é, ‘agarre seu médico agora’ [risos]. Era uma festa com umas doze moças paradas e uma única moça – ocidental – dançando com um rapaz que eu não conhecia. Pois eu gostei justamente dela. Já tinha fama de ‘saidinho’, comecei a ler a mão de todas as meninas, mas como eles ainda continuavam dançando, bati no ombro do cara e disse: ‘Dá licença, só falta ler a mão dela’. Enquanto ele se refazia do susto, peguei a mão da Natércia, explicando-lhe que no baile ela iria encontrar um japonês que queria dançar com ela fazia tempo... E já saí dançando! [esse fato é contado no livro Obrigado, minha esposa, Editora Gente].
Já havia namorado outras moças, meio namorador, mas nada que considerasse ser algo mais. Pouco tempo depois, meu irmão mais velho se casou. E de que jeito? Miai. E o segundo, advogado, também se casou por miai. Olha o que me esperava! Como se sabe, nesse método os noivos são apresentados depois que seus pais, com ajuda de um “miaiseiro”, já combinaram o casamento. Fala mais alto a tradição, depois os pais e, por último, os noivos. É da cultura japonesa que as filhas sejam entregues à família do noivo, e que a sogra tenha mais poder sobre a noiva do que a sua própria mãe. Mas ainda era muito estranho, no mínimo diferente, o casamento entre um nikkei e uma ocidental. Primeiro foram os japoneses a casar com as ocidentais e depois os ocidentais casando com as orientais. A grande diferença que existe no Brasil está na ordem dos valores: falam mais alto os próprios noivos, depois os pais e, por último, a tradição. Para quem tem a cultura japonesa dentro de si, aceita muito bem o casamento por miai. Meus irmãos casaram assim e acredito que tenham dado certo, pois os cônjuges continuaram juntos até o Nobuo falecer, e Rinji ainda vive com a esposa.
Pouco tempo depois de começarmos a namorar, levei Natércia para uma festa de final de ano em Taboão, onde a família inteira estava reunida em torno de uma grande mesa: vovô, papai, mamãe, irmão mais velho e toda uma hierarquia. Aliás, hierarquia para japonês é fundamental e equivale à igualdade para o Ocidente. A pior coisa que se pode fazer é quebrar uma hierarquia. Meu pai começou a falar em japonês e eu traduzi. Ele começou a se incomodar e meu irmão mais velho tomou suas dores: ‘Por que você está traduzindo?’ Respondi que estávamos no Brasil e, como havia uma pessoa que não entendia japonês, era questão de educação. Isso caiu como uma bomba, pois levei o Ocidente para o miolo do Oriente! Meu irmão levantou-se indignado, dizendo que eu nem estava mais em casa e ousava fazer isso, desrespeitar o papai! Até que meu avô pôs as coisas no lugar: ‘A vida é dele e, se ele gosta, ele vai casar. Ninguém vai falar nada, que podia traduzir, que não importava o costume diferente dela...’ Assim, ele autorizou ‘oficialmente’. O meu avô puxava a orelha, dava castigos, cascudo e tapas nos filhos até graúdos, mas comigo não. Ele sempre foi uma boa lembrança. No começo, a família de Natércia, portuguesa de Bragança, não aceitou muito bem, achavam um absurdo: não pelo fato de não gostarem de japonês, mas pela diferença de cultura. Além disso, eles também tinham um pretendente para ela.
Natércia conta: ‘Quando minhas amigas me falavam do Içami, já me contaram que ele era inteligente, festeiro... Eu tinha um pretendente e muitas dúvidas porque fui preparada para aquela coisa de casar bem, com alguém estudado, não de outra cultura. Naquela época a gente não namorava fora e, assim que ele entrou em casa, meus pais logo gostaram dele. Aliás, todos que o conheciam logo se apaixonavam. Nós tínhamos persistência para enfrentar as resistências da parte dele e eu sempre tive consciência de que eles não queriam nossa união não por não gostar de mim como pessoa. Eles lutavam por algo que valorizavam. De minha parte – talvez eles nem se dessem conta disso — eu tinha certeza de que levaria comigo o melhor deles todos, o filho deles, o mais especial!’
Mesmo com o avô autorizando, a família não aceitava o casamento. Contamos muito com a ajuda do meu tio paterno mais novo, Kurata, e sua esposa Kikuo Takeoka. Mais tarde, eles seriam nossos padrinhos de casamento e eu fui praticamente o filho que eles não tiveram. Portanto, Natércia e eu somos muito gratos a eles. Tio Kurata, aos 87 anos, é muito lúcido: assiste ao canal japonês de TV e lê diariamente o jornal São Paulo Shimbun, escrito em japonês. Meus tios sempre moraram sozinhos e, após o falecimento da Kiku-chan, Kurata continuou sozinho, ali, na mesma casa desde 1953, no bairro de Pinheiros.
Católica, a família de Natércia considerava a cerimônia religiosa muito importante e queriam tudo certinho. Então, fui batizado pelo padre [Shigeo] Takeuchi, o mesmo que recebeu meus irmãos no São Francisco Xavier. Eu fazia residência e a Natércia estava no terceiro ano da faculdade de direito. Na véspera da cerimônia, meus pais me procuraram para dizer que não iriam atrapalhar, mas também não iriam ajudar. Não contamos com eles, mas levei a roupa para o meu pai usar. Mas, no dia, minha família inteira compareceu ao meu casamento, celebrado pelo padre Takeuchi em 1969, depois de quatro anos de namoro.
Depoimento à jornalista Patrícia Rodrigues
Fotos de Renato Stockler e arquivo pessoal de Içami Tiba
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil