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Em casa, nossa alimentação era um misto de japonês com brasileiro, que combinava os ingredientes da terra aos costumes orientais. O arroz, por exemplo, era feito só com água, sem gordura. Sushi e sashimi eram coisas de festa, mais sofisticadas. Nunca fui muito ligado a prazeres da mesa e para mim está tudo ótimo, embora hoje, influenciado pela [esposa] Natércia, prefira macarrão al dente, porque antes a gente comia uma maçaroca de macarrão, misturava coisas.
Quando havia, minha mãe preparava peixes mais do que o comum. Em geral, era sardinha aberta, frita à milanesa, com arroz branco e conservas de salgados (tsukemono). Era uma delícia. Sempre tínhamos sopa nas refeições, missô e alimentos à base de soja, como shoyu e tofu. Em Tapiraí tínhamos pessoas que faziam tofu para nós. Meu pai dificilmente almoçava em casa, pois sempre estava às voltas com os negócios. Mesmo quando passamos por uma dificuldade financeira em São Paulo, nunca faltou comida para nós. E, mesmo nessa época, minha mãe fazia muitos bolos de assadeira. Ela era muito caprichosa, tanto que quando um bolo já estava na metade, ela já tinha outro pronto a qualquer hora.
Meu pai andou perdendo dinheiro com quebra de banco e, para ajudar, minha mãe também passou a costurar para fora bolsinhas de plástico. Nós cortávamos as rebarbas. A área de trabalho da minha mãe se restringia ao espaço de uma cama de solteiro e o apartamento também servia de escritório para o pai, que tinha uma grande escrivaninha com gavetas.
Ainda em Tapiraí, aos oito anos passei a freqüentar regularmente o kaikan para praticar as aulas de judô com o professor Inada. Eu queria derrubar logo de cara os outros alunos, mas tinha que aprender a cair, tinha as regras e não podia desmontar os adversários. O professor me proibiu e me fez treinar muito o ukemi (como cair sem se machucar), sempre me estimulando com frases. Algumas delas – ‘Quem sabe cair sabe derrubar sem machucar’; ‘Nós perdemos muito mais que ganhamos’ – me acompanhariam a vida inteira. No entanto, somente mais tarde comecei a entender o alcance desses ensinamentos. Foi o único esporte que fiz na vida sistematicamente até os 28 anos.
Nossos pais sempre nos estimularam para que continuássemos praticando o judô. Da Bela Vista, Rinji e eu — mais conhecidos como Tibão e Tibinha — íamos a pé para ter aulas na Santa Ifigênia, em uma academia que ficava nos fundos da casa do professor Fukio Nakano. Quando ele se mudou para a Mooca, íamos a pé até o Clube Esportivo e Recreativo Paratodos, nipo-brasileiro, onde passei minha adolescência. Era uma caminhada longa, talvez um hora em passo rápido.
Tanto o professor Inada quanto Nakano viviam do comércio durante o dia e, à noite, davam suas aulas. Eu também achei que já estava em condições de fazer o mesmo e fui em frente. Foi assim que comecei a ensinar judô para crianças. Elas melhoravam no comportamento e no rendimento escolar. Fui convidado a apresentar meus alunos em ação em um programa da Hebe Camargo, na TV Tupi. Lá fui eu, um colegial com seus aluninhos disciplinados dando golpes e todos felizes para a grande novidade que era a televisão, que poucos tinham. Meus pais ficaram muito orgulhosos, mas não me viram. Com essas aulas, ganhei uns cobrinhos, enfrentei vários campeonatos e, em 1966, recebi o prêmio de Campeão Brasileiro Universitário de Judô da Faculdade de Medicina da USP.
No final do ginásio eu costumava ir a festinhas. Meus pais nunca me prenderam, mas cobravam estudo: se ia bem na escola, estava bom. Eu tinha uma turma danada de farrista, de fazer bailes, de freqüentar festas como penetra. No colégio, apesar de estudar e prestar atenção nas aulas, virava a escola de cabeça pra baixo e levei muita suspensão. Era o único japonês ‘saidinho’ do colégio: fazia festinhas, dançava bem, brigava bem e circulava bem entre os bagunceiros e os ‘cdfs’.
Nessa época, também promovia bailes nas casas das pessoas em nome do colégio. Eram festinhas que reuniam muitas pessoas ao som de um bom toca-discos. As despesas eram cobertas pelo que se cobrava de ingressos. Mais tarde, essa atividade fazia parte das atribuições do diretor social do grêmio, com um pouco de DJ. Um destes bailes foi feito no Salão Social do clube Pinheiros, com um conjunto musical contratado para tocar à noite, um evento bem chique para os nossos padrões. Quando o som era rock, eu descia do palco e dançava solto com algumas garotas que sabia que dançavam bem. E quando chegava a vez do samba, eu não só pulava, mas também brincava com um pandeiro.
Nunca senti diferença entre japonês e brasileiro. No colégio havia muitos nisseis e sanseis, assim como em todo o bairro de Pinheiros. Nas minhas classes do ginásio e do colégio, os japoneses, como éramos todos chamados, eram geralmente os melhores alunos. Mesmo os que não iam tão bem eram muito esforçados. A maioria era tímida, porém, mais responsável que os outros. Só mais tarde, na época do cursinho Brigadeiro, que me lembro de umas frases na parede do tipo ‘Já matou seu japonês hoje? Garanta sua vaga, eles são um perigo!’. O Brigadeiro era o melhor curso para medicina, com bastante japonês, e o pessoal entrava na faculdade mesmo.
Assim como os nikkeis do cursinho, meu pai também era muito inteligente. Foi nas atividades do kaikan, ainda em Tapiraí, que descobri o quanto meu pai era importante. Ele era o puxador, o DJ da época, fazia discurso, apresentava, era o artista que cantava, dançava e tocava taiko. Todas as pessoas o reverenciavam. Eu achava aquilo o máximo! De paletó e gravata, ele nem parecia ser a mesma pessoa que minutos antes estivera mexendo com carvão. Ele não tinha título, mas era muito culto e inteligente, proeminente e influente na comunidade. Nunca parou de estudar, tanto que nos anos 70 ordenou-se monge budista, atingindo o mais alto grau aqui no Brasil. Para completar, aos 72 anos ele se formou em direito na Faculdade Mackenzie para poder fazer seu aperfeiçoamento no Japão, pouco antes de falecer, vítima de enfarte.
Ainda na época em que morávamos na Bela Vista, ele chegou a trabalhar com corretagem de imóveis e terrenos e alguns dos nossos finais de semana eram passados com ele em Taboão da Serra, onde construiu várias casas. Ele como pedreiro e nós como serventes. Aqueles tempos eram muito difíceis, mas promissores por podermos construir o que viria a ser a nossa casa e as dos meus irmãos maiores. Lembro-me bem da alegria que era podermos comprar frutas de um carroceiro que as vendia pelas ruas.
Não tínhamos mesada, mas papai costumava pagar cada tarefa que fazíamos em casa, como encerar a casa, lustrar os móveis etc. Ele fazia uma cadernetinha de crédito do nosso trabalho e nos passava o dinheiro que precisássemos para nossas despesas pessoais. Era uma maneira de nos estimular a fazer economia.
Quando mudamos para Taboão, para a casa que construímos, praticamente não via meus pais. Eu já estava muito ausente de casa, voltava tarde, envolvido com os estudos. Foi nessa região que meus pais recomeçaram a vida com um pequeno empório, que nós mesmos construímos. Vendíamos de tudo. Minha mãe também foi para o balcão, junto com meus irmãos. Mas eu já tinha traçado para mim o meu futuro de querer estudar muito e assim o fiz. Papai queria que Nobuo fosse dentista, mas meu irmão acabou se dedicando ao empório. Rinji fez faculdade de direito.
Meu pai recomeçou a sua vida de motorista, só que desta vez como taxista, assim como seu irmão Tadami, no Cambuci. Logo também montou uma frota de táxis, com treze DKWs. A casa ao lado da nossa, também construída por ele, passou a ser o escritório da frota, onde ele passava muito tempo controlando o movimento dos seus diaristas. Tanto do empório quanto da frota de táxis vinham os sustentos de todos os da casa.
Assim como em Tapiraí, Taboão da Serra tinha um kaikan, onde papai era bastante atuante. Hoje, na entrada para o centro de Taboão da Serra, ao lado da rodovia Regis Bittencourt, para quem vem do sul, há uma escultura em granito, de dois a três metros de altura, com dizeres da colônia japonesa incluindo uma homenagem ao sr. Yuki Tiba, meu pai.
Depoimento à jornalista Patrícia Rodrigues
Fotos de Renato Stockler e arquivo pessoal de Içami Tiba
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil