Conte sua história › Içami Tiba › Minha história
Meus irmãos mais velhos estavam começando a escola, mas eu, aos sete anos, ainda não podia freqüentar. Mas me deixavam entrar até o pátio porque era ‘o filho do Tiba’ e eu me sentava do lado de fora, em um barranco para assistir às aulas pela janela. Gostava muito. Na minha mente, não me lembro de ter ido tantas vezes, mas deve ter sido muito importante porque, quando entrei na escola de fato, em 1949, já sabia ler, escrever algumas coisas e a fazer contas. Anotava, levava para casa e perguntava para minha mãe, que me ensinava. Japonês quando nasce é considerado um ano mais velho, pois conta-se o tempo de gestação. Assim eu poderia ir para a escola aos oito anos pela contagem japonesa, mas o que valia para se matricular na escola era a contagem brasileira de oito anos, equivalente aos nove orientais. Estudei no João Rosa até o terceiro ano e sempre tive as melhores colocações. Hoje, visitando o meu antigo grupo escolar, não encontro mais aquele barranco. Ele está ampliado, com pátio coberto, cercado, com terraplenagem feita à sua volta. Senti uma nostalgia de saber que apagaram os vestígios da minha história, assim como a casa que eu nasci já não existe mais...
Essa escola só tinha o primário e meus irmãos já tinham vindo para a capital estudar no São Francisco Xavier, no bairro do Ipiranga. Nessa época, o colégio era conhecido por receber japoneses nativos e nisseis. Então, fui morar na casa dos tios Tadami e Sawa e seus sete filhos, no Caxingui, hoje Jardim Guedala. Estudei na escola Godofredo Furtado. No ano seguinte, entrei para o Fernão Dias Pais, com uma excelente classificação, todo vitorioso com meu novo uniforme. Esse primeiro ano de capital foi muito bom.
Mas, assim como passei do primário para o ginásio, o tratamento na casa de meus parentes mudou de repente. Meu tio trabalhava como motorista de táxi, meus cinco primos brincavam na rua, minhas duas primas saíam e minha tia me fazia de empregado. Aos doze anos, tinha que fazer as tarefas da casa: encerar, limpar móveis com óleo de peroba, lavar louça, varrer o quintal e fazer todas essas coisas. Gastava um tempo imenso e reclamei para minha tia que queria estudar e não tinha tempo. Ela ficou brava e me mandou estudar à noite! Para piorar a minha situação, minha tia Tomiko, que também morava lá, trabalhava e voltava à noite. O ponto de ônibus era afastado de casa, o caminho era escuro, com vários terrenos baldios. E adivinhe quem tinha que esperar a tia no ponto? Eu, enquanto os outros ficavam em casa. Quer dizer, se acontecesse algo comigo não tinha importância. Fiquei muito revoltado, pensava em fugir, pois era um ‘sobrinho-colono’!
Meu pai me visitava freqüentemente e um dia me questionou por que a minha expressão andava carrancuda, como se eu estivesse bravo. Contei para ele, que me respondeu para agüentar a situação porque a tia não mudaria. Esse ‘ter que agüentar os sofrimentos calado’ (gaman suru) é um traço marcante na cultura japonesa. Choramingar era vergonhoso, era ser fraco, era muito feio.
Tive uma vontade imensa de parar de estudar, de fugir de casa. Mas, quando me lembrava de mamãe dizendo que, para ser médico, teria que estudar muito, me acalmava. Mais tarde, já na Bela Vista, fiquei mais bravo ainda quando descobri que meu pai pagava para eu morar lá e que minha mãe mandava ‘as misturas de que eu tanto gostava’. Talvez meu pai nunca tenha contado isso para a mãe, mas nunca sequer vi a cor e muito menos senti o gosto daquela comida. Fiquei tão revoltado e de mau humor que nem conseguia estudar direito. Esse período teve um custo violento no meu desempenho escolar.
A infância era uma casca que me protegia. Na casa do tio Tadami eu estava deixando a infância, em plena puberdade e ainda sem a proteção da adolescência, quando fui ‘predado’ pela minha tia. Não adiantava o tio Tadami ser uma boa pessoa se a sua esposa era uma megera. Isso me custou quase dois anos, sob o risco de abandonar a escola.
Felizmente, em 1954, meus pais se mudaram para São Paulo. Fomos todos os filhos e a vovó Momoe morar no Edifício Paris Roma Rio, junto ao Teatro Maria Della Costa. Vovô não veio porque não gostava de São Paulo e preferia o interior. A vovó, diabética, vivia adoentada e morreu pouco tempo depois. Minha avó pouco se movimentava, ficando a maior parte do tempo deitada. As conversas com ela eram curtas e praticamente não me lembro de ter proseado com ela, do que ela tenha me falado ou feito.
O nosso apartamento era o maior do conjunto e eu o achava imenso comparado a Tapiraí. Tinha dois quartos, sala, cozinha, um banheiro grande com banheira, área de serviço e as dependências de empregada, onde dormiam os meus pais. Os seis filhos e a vovó Momoe dividiam dois quartos. Para os meus conceitos e idade, parecia que o apartamento era grande, mas hoje percebo o quão pequeno era: é quase inacreditável que tanta gente pudesse viver ali! Além disso, em 1957, Jushiro Sato, parente de minha mãe, veio direto do Japão para morar conosco. Ele só falava japonês, mas o que nós falávamos do idioma era suficiente para nos entrosarmos bem.
Depoimento à jornalista Patrícia Rodrigues
Fotos de Renato Stockler e arquivo pessoal de Içami Tiba
As opiniões emitidas nesta página são de responsabilidade do participante e não refletem necessariamente a opinião da Editora Abril
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil