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Não era costume japonês ficar dando presentes aos filhos, mesmo que fosse aniversário. Aliás, eles nem eram comemorados. Os únicos presentes que ganhei na minha infância toda foram um canivete (do meu pai) e uma gaita (da minha mãe), que se chamava Dó-ré-mi. Comecei a fazer um barulho danado com a gaita, até que mamãe decidiu me ensinar. Ela me surpreendeu muito, pois tocava impecavelmente. Aprendi em um instante. Lá ia eu pelas ruas tocando as músicas que pedissem. Até hoje toco umas músicas.
As nossas festas aconteciam mais no kaikan: onde houvesse japoneses, lá haveria também um kaikan. Esses clubes foram traduzidos como associações culturais e esportivas nipo-brasileiras, seguidas pelo nome da cidade. Culturais porque havia cursos de língua japonesa, arte culinária, corte e costura etc. E esportivas porque havia também a prática de esportes como judô, sumô e beisebol. Para esportes ao ar livre usava-se o campo de futebol da cidade, onde também eram realizadas as tradicionais festas esportivas japonesas, chamadas undokai. Todos eram premiados e dificilmente alguém voltava para casa sem nada. Havia corrida de sacos, corrida para equilibrar ovo sobre uma pequena colher, correr carregando alguém nas costas, arremessar pesos, saltar alturas e distâncias, corridas livres, salto de barreiras. Os participantes do undokai eram divididos entre todos: grupo de pais, de jovens conforme a idade, de crianças, de mulheres, de homens etc. Tudo com muita farra, comida e gasosas. Assim como toda criançada da vila, eu esperava ansiosamente essa festa anual. Reparava que os brasileiros não faziam essa festa toda. Hoje sinto a importância desses festejos que uniam a comunidade. Durante o acontecimento, as pessoas se entrosavam, casamentos eram arranjados, negócios eram fechados, formavam-se parcerias para os mutirões e um ajudava o outro em caso de necessidade. Falava-se muito mais japonês que português, que passou a ser introduzido com a chegada dos filhos, assim como a participação de brasileiros.
O kaikan também promovia sessões de cinema de filmes japoneses de vez em quando e era um verdadeiro acontecimento! A tela era um imenso pano branco e o filme era projetado por imensas máquinas barulhentas. As famílias que chegavam antes estendiam suas colchas sobre o tatami e cada uma ocupava o seu espaço. Ali, não faltavam os bentôs. Era um verdadeiro piquenique durante o filme e a gente adorava carregar as coisas para lá. Os que chegavam depois ocupavam aqueles bancos feitos de tábua, sem encosto, e se viravam como podiam, mas não perdiam os raros filmes que apareciam. Não tinha uma única vez em que o filme não arrebentava e, enquanto a fita era remendada, as pessoas saíam para beber água, ir ao banheiro. Ah, ir ao banheiro ali era uma coisa horrorosa, o sistema mais feudal que existia: um buraco no chão, com tábuas em cima e cada um que se virasse... Como era pertinho, a gente corria para casa porque era muito mais tranqüilo (risos).
Também gostava muito de ir ao Seinen Kai, uma espécie de clube dos jovens, onde havia festas, casamentos e comemorações com muita comida japonesa, sushi, sashimi, oniguiri, yokan, tempura, tsukemono, mochi, manju, ocha (chá) e gasosas. Tudo era disposto em bancadas compridas, feitas de tábuas sobre cavaletes cobertas por papéis. Ao redor delas, ficavam os bancos sem encosto e, entre os corredores estreitos, circulavam adultos, comidas, crianças correndo e cachorros intrusos que devoravam o que nos arrependíamos de ter pegado.
Minha mãe também gostava das festividades, mas ela era mais da turma do ‘fica quieto e vamos trabalhar’, pois essas atividades exigiam toda uma preparação. Nós também ajudávamos pregando bandeirinhas. O clube era repleto de escritas japonesas feitas por minha mãe, como os nomes das pessoas em placas de madeiras. Com sua caligrafia especial, ela escreveu um ideograma imenso, de quase dois metros de altura, até há pouco tempo pendurado em um local nobre do kaikan. Apesar da vida de trabalho intenso, ela sempre teve a escrivaninha em casa para treinar sua caligrafia. Em 1991, ela recebeu o prêmio da mais graduada calígrafa japonesa fora do Japão.
O que mais me impressionava na minha mãe era sua garra, e continuo com esta sensação até hoje. Seu dia era tomado pelo movimentado armazém, sempre carregando um filho pequeno nas costas. Era como se não sentisse o peso do meu irmão enquanto trabalhava, andava, atendia aos fregueses. Com geada, neblina ou não, ela acordava às quatro da manhã, bem antes do expediente, e seguia até o riacho do fundo da casa para lavar roupa. Naquela água gelada, com pedras de sabão, esfregava e batia a roupa em uma tábua inclinada. Lavar a roupa não parecia tão difícil quanto proteger o filho amarrado nas costas do frio e do vento. Meu avô havia feito para ela um reservatório, tipo tanque de roupa de água corrente, que escorria para o riacho. As crianças eram proibidas de brincar lá, pois havia uma escadaria com mais ou menos dez metros de altura, também feita pelo meu avô. Mas a maior ameaça eram as cobras venenosas. Eu só podia chegar lá com o meu avô.
Depoimento à jornalista Patrícia Rodrigues
Fotos de Renato Stockler e arquivo pessoal de Içami Tiba
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil