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Tio Tadami já tinha ouvido falar que em Tapiraí (SP) existiam japoneses e que cada um trabalhava para si, sem viver em colônias. E minha família não estava mais disposta a trabalhar para os outros. Então eles resolveram ir para lá.
Construíram uma casa de madeira em um declive, em uma esquina perto da avenida principal da cidade. Essa casa, que não existe mais, ficava em uma ponta de esquina em bico, entre uma subida e outra descida. Minha mãe nos contava que o papai trabalhava em um morro que começava depois de um riacho, cerca de quinhentos metros da casa. Subia o morro derrubando os matos e árvores para queimá-los em fornos, cavoucados em barrancos, com tetos de barro, tudo feito por ele mesmo. Meu pai começou a queimar carvão para comercializar em São Paulo, com um caminhão.
Minha mãe não falava português e o meu pai, um autodidata em nosso idioma, vivia carregando no bolso um pequenino dicionário. Na volta de São Paulo, meu pai passava pelas Casas F. Monteiro e comprava mantimentos, botas, facões e tudo o que não tinha em Tapiraí para expor na sala de casa. Quando chegava algum cliente japonês, minha mãe vendia. Quando aparecia brasileiro, minha mãe levantava uma bandeirinha branca para o pai, todo sujo de carvão, descer do morro e vir atendê-lo. Para vender sem prejuízo, ele usava um código de preços que marcava o preço pago. O episódio das bandeiras durou pouco. Meus pais falavam em japonês e nós tínhamos que responder em português, porque eles queriam, de fato, aprender bem o idioma.
O negócio começou a progredir e eles melhoraram de vida. Por essa época, meus pais construíram um armazém de alvenaria, a “Casa Tiba – Secos e Molhados”. Morávamos no fundo desse armazém, onde eu nasci. Nesse armazém também nasceram meus quatro irmãos menores. Ali viviam ainda os avós Rinnosuke e Momoe e mais uns irmãos menores do papai.
Acredito que vivíamos bem, pois papai vivia viajando, agora comprando carvão produzido por outros carvoeiros. Ele teve até que construir um depósito e já tinha alguns caminhões pés-de-boi para entrar no mato e recolher carvão e um grande, mais novo, para transportar o produto ensacado para São Paulo. No período da Segunda Guerra Mundial, a Casa Tiba já vendia de tudo. Tempos depois, a frente ganhou até uma bomba de gasolina. Apesar de já possuírem caminhões e funcionários, minha mãe trabalhava feito uma doida, com os nenês pendurados nas costas, um costume japonês. Meu pai vivia fazendo carvão e viagens quase diárias para vender a mercadoria em São Paulo. Na época da guerra, meus pais sofreram discriminação, mas não direta. A guerra tinha acabado há pouco tempo, mas meu tio Hideo acabou sendo preso porque falou em japonês, o que era proibido. Foi arrastado por policiais com violência para a cadeia e essa cena para mim, com quatro anos, foi muito chocante. Não me lembro de como ele foi solto, mas meu pai deve ter resolvido a questão em algumas horas.
Apesar da vida de muito trabalho de meus pais, nós tivemos uma infância de muitas brincadeiras. Meus dois irmãos mais velhos, Nobuo e Rinji, eram muito levados e apanhavam do meu pai e do meu avô. Mas eu era muito sossegado e não me lembro de ter apanhado! Nós tínhamos uma turma grande de amigos da avenida, umas dez casas. Brincávamos (e brigávamos) com o outro lado da rua e depois dividíamos a rua de outro jeito. Apesar de brincarmos muito, todos nós tínhamos tarefas.
Como havia a carvoaria, a nós, crianças, cabia catar os cacos de carvão no chão que caíam ao carregar e descarregar os caminhões. Os cacos tinham de ser aproveitados para o fogão a lenha e também para passar a idéia de que não poderia ter desperdício de nada. Até hoje faço questão de um chão impecável, mesmo que a minha mesa de trabalho esteja uma bagunça! Minhas arrumações pessoais lembram a organização de um mercadinho oriental: ao freguês brasileiro parece uma imensa bagunça, mas o dono japonês sabe exatamente onde encontrar cada produto na hora de vender.
Lá em casa não tínhamos água encanada. Toda a água utilizada ficava acumulada em dois tonéis, imensos para nós, mas que deveriam ser enchidos diariamente por meio de uma bomba manual que trazia água do fundo do poço. Ninguém gostava desse serviço, então, meu pai estabeleceu um rodízio de bombeadores. Cada dia um filho bombeava. Nessa função, inventamos umas palavras esquisitas, que não eram japonês nem português. Os adultos mandavam Nobuo e Rinji “bombar” a água — não falávamos bombear. Em japonês: "Mizu kuminassai!" E se tivéssemos já bombeado, gritávamos “Já kundei”, significando “já bombeei a água”. Com menos de oito anos, achei que também podia fazer isso. Foi a glória para os outros. Levava um tempão e, no ritmo das bombeadas, eu cantava músicas japonesas. A minha preferida era “Yuuyake koyake de hi ga kureru” (sobre o pôr-do-Sol) que dizia que “o dia está acabando, a lua está nascendo e as crianças se dão as mãos porque é hora de voltar para casa”.
Sempre tivemos o costume de usar ofurô em casa. Vovô era sempre o primeiro a se banhar e os netos deveriam misturar a água e, mesmo que disséssemos que estava boa, ele sempre perguntava se tínhamos mexido na água antes. E ai de quem mentisse! Apanhava do avô, que era muito bravo: ‘A surra é para aprender a fazer o serviço completo’, para não causar choque térmico nele. Quando isso acontecia, era um sufoco geral, pois vovô agitava todos os presentes porque saía pelado para o pátio gritando pelo responsável para lhe dar uma surra. Todos tremiam.
Meu avô nos ensinou a fazer sorvete e prever o tempo para ver se haveria geada. Durante o dia, nós perguntávamos para ele: ‘Vai dar para fazer sorvete hoje?’ E ele respondia: ‘Hoje podemos’ ou ‘Hoje não adianta’. Ou ainda: ‘Hoje vai fazer frio, mas não vai gear’. Se ele dissesse que sim, dava certo, mas se ele dissesse que não, nem adiantava tentar. Era com muita alegria e ansiedade que nós colocávamos potinhos com água e groselha para congelar durante a noite e tomar nosso sorvete pela manhã! Ensinei para minha filha Luciana que precisa ter uma névoa em volta da lua clara, fato que a gente só percebe com o olhar muito acostumado.
Na época da minha infância, meu sonho era ser motorista de caminhão, pois achava maravilhoso poder dirigir. Pegava caixas de madeira utilizadas para mantimentos e empurrava meus irmãos menores – as cargas –, e eu era o motorista e o motor. Nós brincávamos em volta de um escritório de alvenaria que meu pai havia construído, separado da casa, para tratar de negócios e que funcionava também como sala de visitas.
Foi neste período que minha irmã Yukie, nascida depois de mim, caiu de cama, grave, com pneumonia. Ela era bem fraquinha e vivia doente. Nobuo, Rinji e eu íamos caçar rãs para fritar, uma das poucas comidas que ela aceitava. Eu pegava mais rãs que meus irmãos porque eles eram mais barulhentos e apressados e acabavam espantando-as.
Em Tapiraí não havia médico e meu pai trouxe um, o doutor Imamura, de Piedade ou de Sorocaba. Acompanhei o exame físico observando os mínimos detalhes naquele quarto meio escuro de nossos pais. Yukie estava sentada na cama, fragilzinha, enquanto doutor Imamura escutava seus pulmões encostando suas enormes orelhas (ele deveria ser muito velho) nas costas dela. Depois, o doutor a deitava e batia com o dedo médio direito em outro dedo esquerdo; escutava o barulho e apalpava delicadamente, tendo antes esfregado bastante as mãos para esquentá-las. Depois o doutor se despediu, deixando-nos esperançosos. Foi aí que senti uma vontade imensa de ser médico – mas de viajar. E de kombi. Falei para mamãe que, quando crescesse, queria ser médico. A resposta dela foi que eu teria que estudar muito. Essas palavras ficaram na minha cabeça e me lembraria delas em outros períodos da minha vida
Não me lembro quanto tempo depois disso Yukie faleceu. Foi uma choradeira danada. Nunca mais me esqueci da cena em que vi minha tia Kikuo ir até o poço, abrir a tampa de madeira e gritar lá para dentro do poço o nome da Yukie várias vezes. Não entendi nada, pelo contrário, fiquei assustado. Perguntei a ela por que ela gritava tanto. Ela me respondeu simplesmente: ‘É um costume japonês’. Aceitei como uma das coisas que adultos falam e a gente finge que entende.
Depoimento à jornalista Patrícia Rodrigues
Fotos de Renato Stockler e arquivo pessoal de Içami Tiba
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil