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Meus pais eram lavradores e, no Japão, a situação estava muito ruim. A vida era muito difícil, porque o país vivia em guerra. Muitos bancos japoneses já haviam falido, por volta de 1927-28, bem antes da quebra da bolsa de Nova York [1929], sem contar o tumulto causado pelos rumores de novas guerras. Então, meu avô paterno, Rinnosuke, entusiasmou-se com uma propaganda da imigração que dizia: ‘Vá ao Brasil, fique rico em três anos e volte ao Japão!’. Até a quebra da bolsa, a propriedade deles ia bem. No entanto, meu bisavô paterno havia se endividado e o meu avô era o encarregado de quitar tal dívida. No Japão, as dívidas são hereditárias e a geração dos meus pais teve que trabalhar muito para honrar esse compromisso antes de embarcar para o Brasil. Em 1931, já saía o primeiro grupo da família Chiba com a missão de ver como era o Brasil e chamar os parentes. Vieram meus dois tios: o mais velho (chonan) Tadami, com 22 anos, sua esposa Sawa, com 21 anos, e a filha Sadae, de dois anos, além do segundo mais velho (jinan) Senzo, de 20 anos, que adotou para si o nome de Mário. Eles saíram de Kobe em 5 de abril e chegaram ao porto de Santos em 6 de junho, levando praticamente dois meses a bordo do navio.
Para vir ao Brasil, meu pai deveria ser casado – pelo menos essa é a história que se contava na época. Kikue, minha mãe, também nasceu na roça. Ela concluiu o primário e, quando jovem, foi trabalhar em um escritório em Yokoyama. Ela já estava de namoro com outra pessoa quando recebeu a proposta de casamento de meu pai, o jovem Yuki Chiba, o terceiro de sete irmãos. Além da proposta, teve a promessa de que ficaria rica no Brasil, podendo voltar ao Japão três anos depois. Mamãe recebeu apoio do pai e do tio. Casar não foi muito do gosto de Kikue, mas ela respeitou os desejos dos pais e do tio. Esse é um dos padrões do japonês, muito diferente do brasileiro. A hierarquia no Japão é muito respeitada. Em primeiro lugar vem a obediência ao imperador, depois aos pais e, por último, a vontade do indivíduo. Exatamente o contrário do padrão médio brasileiro, porque aqui primeiro vem o ‘eu’, depois a vontade dos pais e, por último, as leis do país. Desse modo, a jovem Kikue foi coerente com os costumes japoneses.
Meus pais se casaram por volta de 1935. Para a viagem, desfizeram-se do que podiam vender. Saíram de Kobe em 17 de agosto de 1936 e chegaram ao porto de Santos 45 dias depois. Junto com eles vieram meu avô paterno [50 anos], minha tia Kikuo [12 anos, quinta filha] e meu tio Fumio [10 anos, sexto filho]. A propriedade em Miyagi-Ken ficou aos cuidados de minha avó Momoe. Vovó só partiria para o Brasil em 4 de julho de 1938, a bordo do navio Montevideo Maru, acompanhada do meu tio Hideo [quarto filho] e da tia Tomiko [caçula].
Assim como muitos, eles achavam que ganhariam muito dinheiro, mas acabaram em colônias, em Morro Agudo, Alta Mogiana, interior de São Paulo. Por serem mais disciplinados e agüentarem as privações calados, os japoneses eram os trabalhadores mais cobiçados. Nessas fazendas, meus tios contavam que a vida era totalmente diferente do esperado: trabalhavam de sol a sol na colheita de café e dormiam em travesseiros de madeira até que o capataz os acordasse batendo com um pedaço de pau nas camas. Os estudos e conhecimentos dos meus pais foram totalmente ignorados e eles foram trabalhar junto com outros japoneses que lá já se encontravam. Meus pais nunca contaram espontaneamente pelo que lá passaram. Eles não gostavam de mostrar o que sofreram para os filhos. Nunca perguntei aos meus pais onde era a tal fazenda, nem no que eles trabalhavam. Para nós, havia um silêncio em torno desse assunto. Hoje entendo que eles não consideravam importante que os filhos ouvissem os seus sacrifícios. Já na minha infância compreendi muito isso, porque, quando alguém resmungava que não gostava de alguma coisa que lhe acontecia, eles respondiam para agüentar: ‘Gamam surunda yô’, que significa, na forma carinhosa, ‘suporta aí’. Quando a reclamação aumentava, vinham os imperativos ‘Gamam surê!’ (= você tem que agüentar) ou ‘Gudzu gudzu yuute damê da yô!’ (= pare de ficar resmungando). É para agüentar sem ficar choramingando, outro costume japonês.
O meu pai já antevia que não sairiam mais de lá, porque em um ano e pouco as despesas na colônia só aumentavam apesar de todos trabalharem. Na colônia, por mais que economizassem, as dívidas com o patrão iam aumentando cada vez mais. Era uma forma de aprisionar todos os imigrantes. Apesar de conseguirem quitar a dívida, todos resolveram fugir: minha mãe marcou a porta das casas onde moravam os irmãos para acordá-los e escapar de madrugada. Durante uma semana, andavam de noite e se escondiam de dia, livrando-se dos capatazes e seus cachorros e escondendo-se atrás de panelas para driblar os tiros. Provavelmente, meus pais andaram e pararam muito até pegarem um trem, indo parar, em 1937, em Tapiraí, também no interior de São Paulo. Ali, a partir do ano seguinte, meus irmãos e eu nasceríamos.
Depoimento à jornalista Patrícia Rodrigues
Fotos de Renato Stockler e arquivo pessoal de Içami Tiba
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil