Conte sua história › Takeshi Misumi › Minha história
Escrevi este relato em homenagem ao meu pai Tadahide Misumi, após quatro meses do seu falecimento. Agora, por ocasião das comemorações do centenário da imigração japonesa, divulgo neste site para homenagear todos os heróicos imigrantes, consciente de que o sofrimento deles, que no caso do meu pai persistiu até os seus últimos dias conforme descrito a seguir, nunca poderá ser esquecido. A eles a nossa eterna gratidão.
ÓDIO
Parecem fotos. Melhor, assemelham-se às imagens de um filme. Não tem como esquecer a seqüência.
Algum dia, no quarto 216 do hospital. Di-tian – meu pai Tadahide - saindo do banheiro. Passos lentos, as duas mãos segurando o andador. O corpo meio inclinado, apoiando-se sobre o andador. Ele caminhando em direção à cama.
Olho para o seu rosto. O olhar profundo dele denota ódio. Raiva de algo. O olhar era penetrante. Carregado. Não consigo falar nada. Apenas observo o Di-tian andando lentamente. Posicionando o andador à sua frente, e dando os passos trôpegos.
Vai ser difícil esquecer daquele olhar. Difícil imaginar o que ele pensava naquele momento. Mas, deveria ser algo relacionado à sua doença. Talvez estivesse com raiva das doenças que insistiam em não ceder, apesar do tratamento rigoroso a que ele se propôs submeter.
DERROTA
Café da manhã. A copeira tinha trazido para o quarto o desjejum do Di-tian. Mingau. Segundo ele, mingau com gosto horrível. Mas, era a alimentação recomendada pelos médicos e pela fonoaudióloga, para reforçar a alimentação enteral – sonda no nariz. Saí para ir até a toalete do corredor. Ficou no quarto a minha irmã Hideko para ajudar o Di-tian na tentativa de comer um pouco daquele mingau.
Quando voltei para o quarto, vi Di-tian sentado na cadeira, encostado à mesa. Sobre a mesa, Hideko ajeitou a bandeijinha do mingau. Ela me disse que Di-tian resolvera comer sozinho, sem a ajuda de ninguém. Nas outras vezes alguém sempre punha a comida na boca dele. Sempre na cama, semi-deitado, com o encosto inclinado.
Comentei com a Hideko que isso era ótimo. Di-tian queria provar a todos que conseguiria comer sozinho. Sem a ajuda de ninguém. Que ele era forte o suficiente para se alimentar sem auxílio. Todos comentavam que era importante que ele se alimentasse pela boca. Era para que ele se fortalecesse e pudesse se livrar da sonda que tanto o incomodava.
Deu umas três ou quatro colheradas. Tentou mais uma. Tentou novamente. Não conseguiu. Abaixou a cabeça sobre as mãos apoiadas na mesa. Ficou assim durante alguns segundos, talvez minutos.
Percebi uma sensação de derrota. Nunca tinha visto isto no Di-tian.
Ele sempre foi forte. Superou muitas dificuldades, venceu muitas doenças. Não era de se entregar. Dói muito lembrar-me daquela imagem de derrota.
ABANDONO
Centro de Tratamento Intensivo, leito 19. Ele deitado, com os braços amarrados na cama. A enfermeira já tinha me “expulsado”. Já havia expirado o horário de vista. Diferentemente de outras, aquela enfermeira não era tolerante. Não me permitiu permanecer ao lado do Di-tian além do horário estabelecido.
Mas eu tinha voltado ao leito do Di-tian para entregar à enfermeira o hidratante que outro enfermeiro tinha pedido. Era o Fisiogel que ele tanto usou para amenizar as terríveis coceiras que sentia pelo corpo todo. Alergia que incomodou o Di-tian durante décadas.
Após entregar o remédio para a enfermeira intolerante, saí apressado do quarto. Antes de passar da porta virei-me para trás e observei Di-tian olhando em minha direção. Um olhar de interrogação. Um olhar de criança inocente sentindo-se abandonada. Um olhar de quem sente a despedida de alguém.
Tive vontade de voltar para perto dele. Ficar perto dele, para que ele não tivesse essa sensação de abandono.
Uma imagem que dificilmente esquecerei!
20050330
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil