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INFÂNCIA COM DISCRIMINAÇÃO
“Japonês calabrês, foi o diabo quem te fez”. Durante longo tempo, odiei esta frase. Na mente de um menino de nove a dez anos, morando no sítio a cinco quilômetros de uma cidade do interior, era difícil entender o significado dessas palavras. Mas, sentia no coração a discriminação de que era alvo. Naquela época, meu pai Tadahide Misumi era lavrador, cultivando hortaliças que ele vendia na feira da cidade às quintas e aos domingos. Saía de madrugada carregando as mercadorias numa carroça com roda de madeira e aro de ferro. A feira era realizada numa das ruas centrais da cidade de Andradina, na parte da manhã. Às vezes, meu pai tinha que ficar na cidade até o final do domingo, pois era um dos líderes dos verdureiros da região. Combinava previamente com minha mãe que alguém iria até a cidade de bicicleta para trazer a carroça de volta ao sítio após o término da feira. Tudo isso para que o cavalo atrelado na carroça não tivesse de ficar parado durante a tarde toda de domingo em alguma rua da cidade.
Por ser “tionan” (primogênito) cabia a mim a tarefa de ir até a cidade de bicicleta e voltar pilotando a carroça. Aí começava minha agonia, principalmente quando se aproximava de algum grupo de meninos. Adoravam azucrinar o piloto mirim de uma carroça. Não satisfeitos em “pegar rabeira” causando desequilíbrio na carroça, gritavam em coro a frase acima. Detestava ir à cidade, dentre outros, por esse pequeno motivo também. Quando? Meados da década de 50, talvez 1955. Somente após muitos anos comecei a entender que tudo isso era conseqüência da guerra. Uma guerra que colocou brasileiros contra japoneses. Mas, porque eu tinha que pagar por isso?
INÍCIO DA VIDA DE ESTUDANTE
Antes de iniciar o curso primário (escola brasileira) freqüentei aulas de japonês. Hospedava na casa de uma tia que morava na cidade. Convivia com os meus primos e colegas da escola japonesa. Assim iniciei minha vida estudantil: estudando japonês e praticando japonês com meus familiares e parentes. Quase nenhum contato com crianças não descendentes de japoneses. Quando iniciei os estudos do 1º ano do primário, não entendia nada do que a professora falava durante as aulas. Copiava no caderno o que ela escrevia na lousa. Em casa, meu pai escrevia embaixo da frase em português, as legendas em japonês. Por essa e outras razões sempre fui péssimo em português. Com a agravante de ser um matuto. Vivi até os catorze anos no sítio.
VIDA NOVA EM NOVA CIDADE
Minha família mudou-se para São Paulo, pois meu pai queria que os filhos tivessem melhores oportunidades de estudo. Foi um verdadeiro choque não somente para mim, mas também para todos da família. Meu pai comprou uma quitanda, onde eu, minha irmã e meus irmãos ajudávamos. Ingênuos caipiras, de repente no papel de comerciantes numa cidade grande, fomos enganados por espertalhões em várias ocasiões e de diversas maneiras, para desespero do meu pai. Evidente, tínhamos que aprender nesta ESCOLA DA VIDA. Foi muito difícil superar essa fase. A fase de adaptação à nova cidade. A grande Metrópole desafiadora. Com a agravante da minha adolescência. Época de revolta interna, sem o adequado discernimento do certo ou errado. Odiava a mim e a todos com cara de japonês. Achava que as dificuldades da vida eram causadas pelo fato de ser descendente de nipônicos. Grande tolice! Felizmente meu pai, minha mãe e toda a família souberam suportar com muita sabedoria a minha “aborrescência”. E, me deram muito apoio na superação dessa fase crítica da minha vida.
A VIDA PROFISSIONAL
No ano de 1962 eu estava empregado num Banco. Era o meu primeiro emprego com registro em carteira. Carteira Profissional de Menor. Foi difícil conciliar os estudos com o trabalho. Mas, não tinha outra opção. Tinha que batalhar. Todos da família tiveram de trabalhar duro.
Assim, aos trancos e barrancos consegui chegar à Faculdade. Os resquícios da vida matuta continuaram. Quando tinha trabalho em grupo, prontificava-me em pesquisar e datilografar o trabalho, para me livrar da apresentação oral, que deixava para outros colegas. Era a timidez me atrapalhando. Tinha como sonho trabalhar em auditoria. Fiz testes em algumas empresas. Numa delas, fui bem no teste escrito. Mas, na dinâmica de grupo, com oito candidatos e três observadores, discutindo um assunto apaixonante à época – boom do mercado de ações – fui o único a ficar calado durante todo o tempo. Até que um dos observadores pediu aos demais candidatos que me deixassem falar alguma coisa. Silêncio total. Evidentemente que não fui aprovado. Em outra empresa de auditoria, o entrevistador me deu uma verdadeira repreensão. Disse ao final da entrevista: “Takeshi, você foi bem no teste escrito. Mas nesta entrevista você está uma negação. Não posso te admitir. Você tem que mudar, fazer alguma coisa por você”. Foi muito doloroso aquele toque na minha ferida. Mas, foi muito útil. Comecei a procurar formas de vencer o bloqueio da timidez. Li muito sobre auto-ajuda. Prometi a mim mesmo que os meus filhos não teriam este tipo de obstáculos na vida.
Anos mais tarde, eu e minha esposa organizávamos reuniões de família, procurando incentivar não somente meus filhos, mas também outras crianças e adultos a se desinibirem. Eram festinhas de Natal, festivais de karaoke, com competições de equipes feminina contra masculina, com apresentadores, atores etc. Atribuíamos incumbências a todos os participantes, dando oportunidade para que cada um pudesse vencer o bloqueio.
Acredito que de certa forma, deu certo, pois os meus quatro filhos não têm problemas de inibição.
A MISSÃO
Ah... Quanto à frase “Japonês, calabrês....” já não sinto nenhum ódio. Já é passado. Creio que cresci junto com o Japão e o Brasil, junto com os japoneses e descendentes no Brasil. Sinto orgulho de ser nikkei, descendente de japoneses. Como escreveu um escritor nipo-brasileiro, tenho o privilégio de ser brasileiro ao mesmo tempo japonês. Herdei dos imigrantes japoneses uma infindável quantidade de qualificações que acrescida de virtudes da cultura ocidental, me permitem condições para contribuir de forma positiva para o desenvolvimento da sociedade brasileira. É esta a minha missão. Acredito que também de todos os descendentes daqueles heróicos imigrantes que deram a meia volta ao mundo se estabelecendo aqui no Brasil.
20080601
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil