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  Conte sua históriaTakeshi Misumi › Minha história

Takeshi Misumi

São Paulo / SP - Brasil
78 anos, Administrador de Empresas e Contador

TIA KATSUKO


Ela era silenciosa. Seus passos eram silenciosos. Pareciam passos de gato. Sua presença só era perceptível ao vê-la. Mesmo usando tamancos, os seus passos eram silenciosos. As solas de seus tamancos se desgastavam por igual. O desgaste da sola dos tamancos de outras crianças começava pela parte traseira da sola de forma irregular. Isto porque elas caminhavam arrastando os tamancos. Era um barulho ensurdecedor. Apesar do chão de terra batida, à noite, após o banho, as crianças andavam pela casa provocando um barulho irritante. Era um tac, tac, tac incessante. Durante o dia, as crianças andavam descalças. Sapato era artigo de luxo. Só se usava para ir à escola, à cidade ou para alguma festa.
Ela pouco sorria, também pouco esbravejava. Nas poucas vezes que a vi sorrindo, percebi um sorriso bonito, com covinha nas bochechas. Isolava-se no seu silêncio, pouco notado pelos outros. Eu sempre a imaginei minha irmã. Aos poucos fiquei sabendo que era minha tia, irmã do meu pai. Sua mãe, minha avó, falecera quando ela tinha apenas dois anos. A convivência com a mãe foi muito passageira. Talvez não tivera tempo de chamá-la de okaatian (mãezinha). O seu pai, meu avô, cuidara dela com todo o carinho. Pelos menos é o que se percebe nas fotos da época. Mas, o pai também faleceu precocemente, e de forma triste. Três anos após a morte da mãe, o pai sofreu derrame cerebral, vegetando nos últimos anos de sua vida, até o falecimento em setembro de 1944. Ela tinha apenas seis anos. A partir daí foi criada pelo irmão mais velho e pela cunhada. Talvez a sua solidão devesse à consciência de sua orfandade. Não podia dizer: okaatian, tinha que falar oneesan (irmã mais velha, no caso a cunhada), nem podia chorar no colo do otootian (paizinho), pois o seu substituto era o oniitian (irmão mais velho). Preferia o silêncio ao protesto, ao esbravejamento irracional. No silencio cumpria suas obrigações.
Lembro-me muito pouco de sua vida. Poucas são as lembranças de sua manifestação de alegria ou de irritação. De irritação, lembro de um fato em que fui um dos protagonistas. Como menino mais velho vivia judiando dos mais novos. Coisas de moleque. Naquele dia, ela estava lavando roupas, e vendo toda minha traquinagem. De repente soltou um grito. Uma bronca que nunca tinha ouvido.
Com vinte anos aproximadamente era mulher formada. Com sua tez branca chamava a atenção dos homens. Lembro-me do italiano separado da mulher, que morava no galpão anexo à minha casa, e trabalhava para meu pai. Ele fazia de tudo para estar sempre próximo dela. Quando trabalhava sozinho, carpindo entre as carreiras dos amendoinzeiros, dava um jeito de sempre dar uma paradinha para preparar o seu cigarro de palha, e ficar fumando. E, ficava um bom tempo nesse ritual, ganhando tempo. Mas, quando tinha que trabalhar com o resto da família, fazia o diabo para ficar sempre próximo dela. Ás vezes, dirigia algumas palavras, mas creio que não era correspondido. Não era esse velho, o príncipe encantado dela. Nem, o Chico, filho do João Papa, dono do sítio vizinho, nem o Salvador da família Bepe do sítio contíguo. O seu príncipe encantado morava na cidade. Residia em Andradina.
Lembro-me de um domingo, quando voltávamos da aula dominical de japonês. Naquela época, a Associação de Japoneses tinha contratado um japonês recém-chegado para dar aulas de japonês às crianças e jovens da cidade. As moças que integravam a comunidade Jioseinenkai (associação de moças) tinham aulas aos domingos. O uniforme delas era composto pela saia na cor azul marinho, blusa branca, com gravatinha azul. Caminhávamos cerca de cinco quilômetros até a cidade para essas aulas. Eu, apesar de contrariado, era obrigado pela minha mãe a acompanhá-las, e aprender o nihongô (japonês). Naquele domingo, voltávamos, mas estranhei que vínhamos pela Rua Sergipe, paralela à Av. Rio Branco que era o itinerário normal. O seu paquera residia naquela rua. Percebi que ela começou a dar passos mais lentos, ficando alguns metros atrás de nós. Ao olhar para trás, notei que ela diminuíra a marcha para que o seu príncipe encantado a alcançasse. Observei no rosto dela um sorriso alegre. Sorriso de uma moça enamorada, talvez sonhando com um futuro feliz. Contudo, aquele romance não prosperou. Não sei se forçado ou não. Meu pai sempre criticava o pai do rapaz. O pai era alcoólatra e era useiro e vezeiro em encenar episódios dantescos, seja entre os amigos seja em casa.
Após a mudança para São Paulo, com a vida cada vez mais difícil, o seu mutismo se acentuou. Poucos foram os momentos que a vi sorrindo. Mas, a vida não era tão cruel para ela. Através de miai (casamento arranjado) foi apresentado a um rapaz. Após o primeiro encontro, ela reclamou da estatura dele. Meu pai, sabiamente aconselhou-a a reparar na sua estatura nos encontros seguintes. Se ela ainda o julgasse baixinho, o namoro poderia não prosseguir. Mas, ela não falou mais nada sobre a estatura do rapaz. Casou com Paulo Yamashita e foi morar em Jales, interior de São Paulo. Era feliz. O marido era muito carinhoso com ela, muito trabalhador. Era um farmacêutico muito conceituado na cidade. O carinho que ele dedicava a ela se estendia a nós. Todos os anos, às vésperas do Natal, recebíamos dele vários frangos vivos. Eram despachados engradados através da Estrada de Ferro Araraquarense. Certa ocasião, recebemos até um leitãozinho! Vivo! Eram constantes as nossas viagens para Jales, passar férias. Via sempre sorriso em seus lábios, a alegria nos seus olhos. Tiveram três filhos: Oswaldo, Suzy e Nara. Era uma família feliz.
Mas, eis que acontece a fatalidade. Recebemos consternados a notícia de que ela sofrera AVC. Tinha apenas quarenta e dois anos. Viajamos até Jales para visitá-la: eu, minha esposa, meu pai e minha mãe. Ao vê-la, a cena me comoveu. Fui mostrar a minha filha de um ano. Seu rosto se contorceu. Seu olhar ficou penetrante. E, as lágrimas começaram a escorrer. Ela não podia falar, não se mexia no lado esquerdo. Mas, creio que me reconheceu. Nas visitas seguintes, normalmente anuais, ela apenas dava gargalhadas inconscientes. Era consternador vê-la nessa situação. Assim, viveu por mais dezessete anos.
Seu nome era KATSUKO MISUMI YAMASHITA. Katsu = ganhar, vencer; ko = mulher, filha.
Será que ela foi vencida pela doença aos quarenta e dois anos? Ou, será que ela desafiou e venceu a morte por dezessete anos?
Hoje ela descansa em paz no Cemitério da Saudade em Jales.

20080924


Enviada em: 17/12/2008 | Última modificação: 16/02/2010
 
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Comentários

  1. Cristiane Y Nakata (ex-escoteira falcão) @ 17 Jul, 2008 : 20:00
    Oi Takeshi! É a Cristiane... lembra de mim? Admiro a educação que dá para sua família... Abraços! Cris.

  2. Denise Misumi @ 30 Jul, 2008 : 00:42
    Tio, muito lindas as suas histórias! Nao consegui conter as lágrimas lendo "Conversando através do coração". Ainda me emociono relendo-a. Já pensou em fazer um livro contando essas e mais histórias?? Abraços, Denise

  3. Takeshi Misumi @ 3 Ago, 2008 : 18:08
    Denise, obrigadão pelos comentários. Fiquei muito satisfeito e feliz em saber que você se sensibilizou com os meus relatos. Aliás, o meu propósito em me expor neste espaço aberto pela Editora Abril foi tão-somente de tentar sensibilizar os descendentes, principalmente os jovens como você, sobre o sofrimento que os imigrantes passaram. Muito do que nós usufruimos hoje foi graças a eles. Todo o passado vivido e sofrido por eles não pode cair no esquecimento. Cumpre a cada um de nós desempenhar o papel que nos cabe. Quem, no presente, souber reconhecer o passado, saberá construir um futuro melhor. Quanto ao livro, até pensei no assunto. Mas, é um projeto muito grandioso para mim. Não sei se teria condições de realizar este sonho. Acredito que essa tarefa seria mais fácil, se for possível contar com a ajuda de outras pessoas. Abração.

  4. Julio Misumi @ 11 Set, 2008 : 19:11
    Oi Takeshi. Li o relato da mesa, em cima dela na chacara. Ao ler aqui, me emociona saber que ela passou por muitos momentos com a familia, bem antes de nascermos. Quantas conversas e refeições foram feitas nela, por nossos avós e seus filhos (nosso pais)? Quanta utilidade para varias gerações? Ela faz parte da familia e suas cicatrizes foram feitas por alguém da familia em algum momento. Representa bem o passado sofrido e a determinação que nossos antepassados tiveram, para que as futuras gerações (nós e nossos filhos) pudessemos ter uma vida melhor que eles. Obrigado pelo que voce faz pela familia e no que eu puder ajudar, conte comigo. Um abraço

  5. Filhos da Satiko @ 14 Dez, 2008 : 23:47
    Oi Tio, Que legal...Sim, ela tinha olhos grandes e um sorriso radiante, característica marcante dela...Ela era linda e foi uma mãe perfeita pra nós. Agradecemos a mensagem e tudo que vc e a tia fizeram por ela e por nós. Um beijão. Duda, Thie, Fabio e Livia

  6. mario katsuhiko kimura @ 14 Fev, 2009 : 15:48
    Sr. Takeshi, Sou leitor das historias contadas neste Site e agora sou também seu fã. O Sr. deveria ser contador de historia e não contador/administrador. A sua maneira de escrever, contar historia da família através da historia da mesa é de altíssima criatividade, mostrando ser uma pessoa erudita, sábia e inteligente. Acredito ter herdado os valores do seu falecido avô. Como disse um dos entes da família no comentário, o senhor deveria escrever livros. Parabéns e continue a escrever para todos nós. Grande abraço

  7. Julio Misumi @ 31 Mar, 2009 : 13:10
    Oi Takeshi. Eu acho que fui ao casamento da Tia Katsuko e poucas vezes a vi depois disso. Me lembro que durante muitos tempo meus foram iam a Jales visita-la. E tenho certeza que ela desafiou e venceu a morte por dezessete anos, pois meus pais diziam que ela os reconhecia a cada visita. Obrigado sempre e um abraço.

  8. Silvio Sano @ 1 Abr, 2009 : 02:38
    Prezado Takeshi, Depois de muito tempo sem abrir este site para ler as histórias dos colegas, "hisashiburini", fi-lo, tarde da noite de ontem, atraído por um leitor seu fora da família (o Mário Kimura, aí, logo acima). Daí, comecei pela leitura da Tia Katsuko. Contente pelo que fui contemplado, prossegui com as demais, debaixo para cima, porque sabia que a seqüência seria essa. A forma como as narra é muito interessante porque torna universais mesmo os seus mais íntimos personagens. Daí porque "tocou" ao Mário, a mim e, com certeza, a todos os que as lerem (não apenas parentes ou pessoas de seu círculo). Em alguns momentos também me emocionei e, por isso achei que não seria o momento adequado para deixar aqui o meu comentário. Conclui que seria injusto com vc, e que deveria fazê-lo sem que me deixasse levar pela emoção. Algo verdadeiramente sincero. Ou seja, para que o tamanho da satisfação que eu demonstrasse não fosse considerada exagerada devido a isso. Assim, aguardando, até este momento, de "cabeça fria", mas garantindo que a emoção pela leitura ainda permanece viva em mim, cumprimento-o principalmente pela sensibilidade e percepção em relação a outrem, que o levaram também a "conversar através do coração", e de forma a "tocar o fundo da alma" de seus leitores. Parabéns e um grande abraço.

  9. Silvio Sano @ 7 Abr, 2009 : 00:37
    Prezado Takeshi, O jeito que vc exagerou nos elogios, na verdade, só veio comprovar para mim, o quão criativo é para escrever textos (rsrs). Mas, agradeço pela parte não exagerada, que sei, foi sincera. E não apenas o parabenizo por suas virtudes, como, pela citação ao Mário Tomita, acabei ligando para ele, a fim de saber um pouco mais sobre a sua pessoa, mas sugerindo-lhe também para que publique algumas coisas suas no jornal. Ele concordou afirmando que, sendo pra vc, um dos primeiros assinantes dele, o faria com imenso prazer. Que tal atendê-lo então com um artigo, ou uma crônica, esporadicamente... pra começar? Não apenas ele, mas, nós também, leitores, ficaremos muito felizes. Yoroshikune. Abs.

  10. Edson Correa Porto @ 9 Abr, 2009 : 00:36
    E eu que pensei que vc só escrevesse relatórios; parabéns pela sensibilidade; vc sempre surpreendendo. Abraço

  11. Mario Katsuhiko Kimura @ 17 Jun, 2009 : 23:43
    Sr. Takeshi, Só o senhor consegue prestar homenagem aos idosos na forma acima transcrita. Isso mostra a sua grandeza, de ser uma pessoa culta, iluminada. Obrigado por proporcionar a este leitor o prazer de ler, sentir e também emocionar. Grande abraço

  12. Takeshi Misumi @ 16 Mar, 2010 : 07:51
    Teste

  13. Silvio Sano @ 16 Mar, 2010 : 09:34
    Olá, Takeshi-san. Bondade sua. Eu é que fiquei muito feliz com a sua presença e, bem como com a de sua esposa. E ainda bem que o Mário estava lá, né. Bom, aproveito para te solicitar para que veja como será o próximo livro. Link em http://www.youtube.com/watch?v=OfULKT3Beqk A propósito, conhece o Nikkeypedia? Lá vc tb poderá colocar a sua, de seus pais, avós e amigos, histórias. A minha está em http://www.nikkeypedia.org.br/index.php/Silvio_Sano

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