Conte sua história › Takeshi Misumi › Minha história
Ela era silenciosa. Seus passos eram silenciosos. Pareciam passos de gato. Sua presença só era perceptível ao vê-la. Mesmo usando tamancos, os seus passos eram silenciosos. As solas de seus tamancos se desgastavam por igual. O desgaste da sola dos tamancos de outras crianças começava pela parte traseira da sola de forma irregular. Isto porque elas caminhavam arrastando os tamancos. Era um barulho ensurdecedor. Apesar do chão de terra batida, à noite, após o banho, as crianças andavam pela casa provocando um barulho irritante. Era um tac, tac, tac incessante. Durante o dia, as crianças andavam descalças. Sapato era artigo de luxo. Só se usava para ir à escola, à cidade ou para alguma festa.
Ela pouco sorria, também pouco esbravejava. Nas poucas vezes que a vi sorrindo, percebi um sorriso bonito, com covinha nas bochechas. Isolava-se no seu silêncio, pouco notado pelos outros. Eu sempre a imaginei minha irmã. Aos poucos fiquei sabendo que era minha tia, irmã do meu pai. Sua mãe, minha avó, falecera quando ela tinha apenas dois anos. A convivência com a mãe foi muito passageira. Talvez não tivera tempo de chamá-la de okaatian (mãezinha). O seu pai, meu avô, cuidara dela com todo o carinho. Pelos menos é o que se percebe nas fotos da época. Mas, o pai também faleceu precocemente, e de forma triste. Três anos após a morte da mãe, o pai sofreu derrame cerebral, vegetando nos últimos anos de sua vida, até o falecimento em setembro de 1944. Ela tinha apenas seis anos. A partir daí foi criada pelo irmão mais velho e pela cunhada. Talvez a sua solidão devesse à consciência de sua orfandade. Não podia dizer: okaatian, tinha que falar oneesan (irmã mais velha, no caso a cunhada), nem podia chorar no colo do otootian (paizinho), pois o seu substituto era o oniitian (irmão mais velho). Preferia o silêncio ao protesto, ao esbravejamento irracional. No silencio cumpria suas obrigações.
Lembro-me muito pouco de sua vida. Poucas são as lembranças de sua manifestação de alegria ou de irritação. De irritação, lembro de um fato em que fui um dos protagonistas. Como menino mais velho vivia judiando dos mais novos. Coisas de moleque. Naquele dia, ela estava lavando roupas, e vendo toda minha traquinagem. De repente soltou um grito. Uma bronca que nunca tinha ouvido.
Com vinte anos aproximadamente era mulher formada. Com sua tez branca chamava a atenção dos homens. Lembro-me do italiano separado da mulher, que morava no galpão anexo à minha casa, e trabalhava para meu pai. Ele fazia de tudo para estar sempre próximo dela. Quando trabalhava sozinho, carpindo entre as carreiras dos amendoinzeiros, dava um jeito de sempre dar uma paradinha para preparar o seu cigarro de palha, e ficar fumando. E, ficava um bom tempo nesse ritual, ganhando tempo. Mas, quando tinha que trabalhar com o resto da família, fazia o diabo para ficar sempre próximo dela. Ás vezes, dirigia algumas palavras, mas creio que não era correspondido. Não era esse velho, o príncipe encantado dela. Nem, o Chico, filho do João Papa, dono do sítio vizinho, nem o Salvador da família Bepe do sítio contíguo. O seu príncipe encantado morava na cidade. Residia em Andradina.
Lembro-me de um domingo, quando voltávamos da aula dominical de japonês. Naquela época, a Associação de Japoneses tinha contratado um japonês recém-chegado para dar aulas de japonês às crianças e jovens da cidade. As moças que integravam a comunidade Jioseinenkai (associação de moças) tinham aulas aos domingos. O uniforme delas era composto pela saia na cor azul marinho, blusa branca, com gravatinha azul. Caminhávamos cerca de cinco quilômetros até a cidade para essas aulas. Eu, apesar de contrariado, era obrigado pela minha mãe a acompanhá-las, e aprender o nihongô (japonês). Naquele domingo, voltávamos, mas estranhei que vínhamos pela Rua Sergipe, paralela à Av. Rio Branco que era o itinerário normal. O seu paquera residia naquela rua. Percebi que ela começou a dar passos mais lentos, ficando alguns metros atrás de nós. Ao olhar para trás, notei que ela diminuíra a marcha para que o seu príncipe encantado a alcançasse. Observei no rosto dela um sorriso alegre. Sorriso de uma moça enamorada, talvez sonhando com um futuro feliz. Contudo, aquele romance não prosperou. Não sei se forçado ou não. Meu pai sempre criticava o pai do rapaz. O pai era alcoólatra e era useiro e vezeiro em encenar episódios dantescos, seja entre os amigos seja em casa.
Após a mudança para São Paulo, com a vida cada vez mais difícil, o seu mutismo se acentuou. Poucos foram os momentos que a vi sorrindo. Mas, a vida não era tão cruel para ela. Através de miai (casamento arranjado) foi apresentado a um rapaz. Após o primeiro encontro, ela reclamou da estatura dele. Meu pai, sabiamente aconselhou-a a reparar na sua estatura nos encontros seguintes. Se ela ainda o julgasse baixinho, o namoro poderia não prosseguir. Mas, ela não falou mais nada sobre a estatura do rapaz. Casou com Paulo Yamashita e foi morar em Jales, interior de São Paulo. Era feliz. O marido era muito carinhoso com ela, muito trabalhador. Era um farmacêutico muito conceituado na cidade. O carinho que ele dedicava a ela se estendia a nós. Todos os anos, às vésperas do Natal, recebíamos dele vários frangos vivos. Eram despachados engradados através da Estrada de Ferro Araraquarense. Certa ocasião, recebemos até um leitãozinho! Vivo! Eram constantes as nossas viagens para Jales, passar férias. Via sempre sorriso em seus lábios, a alegria nos seus olhos. Tiveram três filhos: Oswaldo, Suzy e Nara. Era uma família feliz.
Mas, eis que acontece a fatalidade. Recebemos consternados a notícia de que ela sofrera AVC. Tinha apenas quarenta e dois anos. Viajamos até Jales para visitá-la: eu, minha esposa, meu pai e minha mãe. Ao vê-la, a cena me comoveu. Fui mostrar a minha filha de um ano. Seu rosto se contorceu. Seu olhar ficou penetrante. E, as lágrimas começaram a escorrer. Ela não podia falar, não se mexia no lado esquerdo. Mas, creio que me reconheceu. Nas visitas seguintes, normalmente anuais, ela apenas dava gargalhadas inconscientes. Era consternador vê-la nessa situação. Assim, viveu por mais dezessete anos.
Seu nome era KATSUKO MISUMI YAMASHITA. Katsu = ganhar, vencer; ko = mulher, filha.
Será que ela foi vencida pela doença aos quarenta e dois anos? Ou, será que ela desafiou e venceu a morte por dezessete anos?
Hoje ela descansa em paz no Cemitério da Saudade em Jales.
20080924
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil