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“SANDAI WO IKYOU NI IKITE SOTSUJU NO HARU” (Misumi Kyomu – 18/11/2003)
“Três gerações, três impérios, no estrangeiro, vivendo 90 primaveras”
Este foi o haiku que avô Tadahide fez em menos de meia hora. Estava atendendo a um pedido do neto André Misumi que queria fazer um trabalho bem caprichado, no estilo perfeccionista do avô. Elaborado com os recursos da informática combinados com a inspiração do poeta-avô, foi distribuído como lembrança aos convidados que compareceram à comemoração dos noventa anos do avô.
Três Impérios : o avô Tadahide nasceu no ano 2 da Era Taisho (18 de novembro de 1913), viveu toda Era Showa (1926-1989), atingindo a Era Heisei (a partir de 1989).
Três gerações : ele, da primeira geração de japoneses no Brasil, estava atendendo a um pedido de um neto – terceira geração da família Misumi. Na época não tinha nascido a primeira bisneta, fato que ocorreria no ano seguinte.
No estrangeiro : o Brasil que acolheu os imigrantes
Vivendo 90 primaveras : os dois, assim como toda a família Misumi estavam nos preparativos da comemoração dos noventa anos do Sr. Tadahide Misumi.
Noventa primaveras. À primeira vista imagina-se que foram noventa anos de primaveras. É preciso aguçar a mente para entender o verdadeiro significado do haiku. Provavelmente o autor quis expressar a sua alegria de ter alcançado mais uma primavera após muitos invernos, talvez vários verões, e quiçá alguns outonos.
Tionan (primogênito) do casal Tadao Misumi e Haru Misumi, Tadahide viveu a infância em Fukuoka. Antes de atingir a adolescência, mudou-se para Osaka. Poderia continuar os estudos no Japão. Porém, optou por acompanhar a família que resolveu emigrar para o Brasil. Embarcaram no navio La Plata Maru em abril de 1928, chegando a Santos em junho do mesmo ano. Os motivos desse início de aventura são os mesmos de tantas outras famílias, que no Japão daquela época, não vislumbravam boas perspectivas de sobrevivência. Além disso, a intensa propaganda sobre um Eldorado no outro lado do Mundo talvez tivesse contribuído para a decisão de deixar o Japão.
INEXPERIêNCIA NA LAVOURA, DESILUSÃO E SOFRIMENTO MAIORES
A bordo do navio, o Sr. Tadao Misumi foi convencido pelo Comandante a mudar de plano. Na visão dele a família Misumi não teria condições de trabalhar como colono de fazenda. Argumento razoável de vez que a família não tinha nenhuma experiência na lavoura, pois o Sr. Tadao fora jornalista no Japão; os filhos eram jovens demais, o primogênito sequer tinha atingido quinze anos. Assim, após desembarcar em Santos e permanecer por algum tempo em São Paulo, a família Misumi dirige-se para um sítio a 13 km da cidade de Sete Barras, próximo de Registro, adquirido ainda durante a viagem. Lá permanece por cerca de 10 meses. Mal sucedidos na cultura de arroz e café em Sete Barras, os Misumi seguiram a maioria dos japoneses atraídos pelos novos horizontes na região da Noroeste, deslocando-se para Promissão, onde trabalharam como colonos. A aventura não terminou em Promissão. Após dez meses nova mudança. Agora para Araçatuba.
PROJEÇÃO SOCIAL DENTRO DA COLÔNIA
A família Misumi marcou presença em Araçatuba, especialmente no bairro rural de Cafezopolis, durante duas décadas, de 1929 a 1950, onde exerceram várias atividades. Cultivo de café, algodão, hortaliças, bicho da seda e fábrica de farinha de mandioca foram algumas dessas atividades. Nenhuma delas com resultado positivo comprovando a lógica de que inexperiência em lavoura dificilmente poderia resultar em êxito.
Mas, graças à formação acadêmica e experiência como jornalista, o Sr Tadao Misumi destacou-se no “shokuminti” (colônia onde se concentravam várias famílias japonesas) de Cafezópolis. Foi Presidente da associação japonesa (“kaikan”) de Cafezópolis por longo período, além de Vice-Presidente da Noroeste Rengo Kai (Confederação das Associações Japonesas da Região de Noroeste). Trabalhou muito em benefício de seus conterrâneos incentivando a educação dos jovens, promovendo o bem-estar das famílias japonesas.
VENCIDOS PELA DOENÇA
Apesar do insucesso nos negócios, a família vivia batalhando diuturnamente para sua sobrevivência. Talvez já sem o sonho de enriquecimento rápido e retorno ao Japão. A angústia e tristeza vieram através dos falecimentos seguidos da filha mais velha Ikuko em fevereiro de 1940, da mãe Haru em junho do mesmo ano. Alguns anos depois o Sr. Tadao sofre derrame cerebral com o qual conviveu até sua morte em setembro de 1944. A partir dessa época o Sr. Tadahide e a esposa Matsuyo, com quem se casara em 1939, passaram a cuidar dos irmãos menores, principalmente a caçula Katsuko que tinha nascido em 1938. Aos poucos, os irmãos do Sr. Tadahide foram se emancipando, casando e mudando-se para outros locais.
ALÉM DA FAMÍLIA, PREOCUPAÇÃO COMUNITÁRIA
Como tionam (primogênito) o Sr. Tadahide herdou várias responsabilidades do Sr. Tadao. Não bastasse isso, o casal Tadahide e Matsuyo teve a árdua tarefa de criar e educar os seus filhos. Muitos filhos como era o costume da época, até por necessidade de braços para a lavoura. Em 1950, com a irmã órfã de pais, duas filhas e dois filhos, a família muda-se para Andradina. Aqui nasceram mais dois filhos e uma filha. Em um sítio de cinco alqueires cultivam os mais variados tipos de agricultura, principalmente verduras. O Sr. Tadahide começa a se destacar assumindo a liderança dentro do grupo de horticultores japoneses. À medida que os filhos cresciam, aumentava a preocupação com a educação. Pressentindo que a cidade de Andradina não oferecia as condições necessárias para uma adequada educação, o Sr. Tadahide toma uma decisão radical. Resolve mudar para São Paulo.
O DESAFIO DE SOBREVIVER NUMA METRÓPOLE
Na época em que decide vender o sítio em Andradina, o Sr. Tadahide foi acossado por uma tentadora oferta de um corretor que oferecia imóveis numa localidade recém desbravada chamada Nova Andradina. Segundo esse corretor muitos dos que se aventuraram naquelas terras do sul de Mato Grosso tinham enriquecido com o cultivo de arroz. Mas, a preocupação com a educação dos filhos foi maior do que o sonho de emancipação financeira.
Em 1960 o Sr. Tadahide adquire uma quitanda no bairro de Pinheiros, iniciando-se como comerciante numa cidade grande. Coincidência: assim como em 1928, o seu pai Tadao resolvera mudar radicalmente de vida quando o primogênito tinha quinze anos, o Sr. Tadahide dá uma reviravolta na vida da família quando o filho Takeshi, também primogênito, tinha catorze anos.
O começo foi dificílimo para toda a família. O Sr. Tadahide acordava todos os dias, exceto às segundas, às quatro horas da madrugada para comprar as mercadorias no mercado de Pinheiros. A quitanda tinha que ser abastecida para abrir as portas até as sete horas. A jornada ia até às 21:00 horas, exceto aos domingos quando a quitanda ficava aberto até as catorze horas. O Ano Novo era o único dia do ano em que não se abria a quitanda. Como balconistas ficavam a filha Teruko e os filhos Takeshi, Kiyoshi e Jorge revezando-se entre si nos horários em que não estavam na escola. A irmã Katsuko e a filha Hideko ajudavam no orçamento familiar, costurando em casa. Eram vários tipos de roupas e outras mercadorias encomendadas pelas fábricas de confecção. Como o trabalho era realizado em casa, ficavam na costura desde cedo até a noite, numa jornada prolongada de aproximadamente catorze horas diárias. Jornada semelhante a que os atuais dekasseguis cumprem no Japão.
À medida que cresciam, os filhos foram arrumando outros empregos, cada qual iniciando sua vida profissional independente. Em 1966, o Sr. Tadahide vende a quitanda e passa a trabalhar como vendedor ambulante. Representante de uma empresa distribuidora de miudezas, teve atuação na região de Osasco, Carapicuiba e redondezas. Uma profissão mais tranquila? Nem tanto. Saia de casa com uma pasta de couro repleta de amostras pesando cerca de quinze quilos. O destino: não somente o centro dessas cidades, mas principalmente a periferia, onde os grandes concorrentes não penetravam. O meio de locomoção: ônibus e sola do sapato. Conhecia todos os rincões desses municípios: Jardim Silveira, Rochdale, Jardim Piratininga, Novo Osasco, Jardim D’Abril, Jandira, Barueri, Itapevi, Quitaúna, Carapicuiba e tantos outros locais dessa região. Foram mais de dez anos nessa vida sacrificada. Tinha que enfrentar chuva, sol, ônibus lotado, condução demorada. Tudo pesando nas suas costas, principalmente a sua idade. Na época já contava com mais de cinquenta anos.
RECOMPENSA E ALÍVIO
Para quem investiu tanto na educação, não há recompensa maior do que a formatura acadêmica dos filhos e a gradativa consolidação como profissionais. Assim, ainda que persistisse batalhando como vendedor ambulante, viu seus filhos homens e a caçula concluírem o curso superior, cada qual em sua especialidade. Para o alívio do Sr. Tadahide, e como recompensa pela prolongada batalha juntamente com a esposa Matsuyo, os filhos foram se emancipando, não somente profissionalmente, como também constituindo cada qual sua família.
Dentre as várias formas de recompensa de que o Sr. Tadahide se fez merecedor, a melhor talvez tenha sido a de poder se dedicar aos seus hobbies prediletos.
INTENSAS ATIVIDADES COMUNITÁRIAS PELO PINHEIROS SHIMBOKUKAI
Servir a outrem. Ser útil a outras pessoas era uma das características do Sr. Tadahide. Por longo tempo por imposição da vida, principalmente após o falecimento do pai Tadao, herdando uma infinidade de responsabilidades na condição de primogênito. Agora que se sentia realizado em relação à educação dos filhos, ser útil a outrem era uma atividade prazeirosa para o Sr. Tadahide. Talvez, por praticar bem as ações em benefício alheio, era muito requisitado. O seu engajamento nas atividades do Pinheiros Shimbokukai iniciou-se após alguns anos da mudança para São Paulo. No início, até em virtude da sua ocupação profissional, a dedicação era menos intensa. Contudo, a partir do momento em que se sentiu desobrigado das responsabilidades na educação dos filhos, passou a se envolver cada vez mais com as atividades comunitárias desenvolvidas pelo Pinheiros Shimbokukai. Eram muitas as atividades em benefício da coletividade nipônica que gravitava ao redor dessa entidade. Keiro-kai (festa em homenagem aos idosos), assistência à saúde dos associados, excursões para diversos pontos turísticos eram algumas dessas atividades, destacando-se dentre elas o undokai (ginkana esportiva) anualmente realizado. Os preparativos se iniciavam vários meses antes do evento, mobilizando vários integrantes do Shimbokukai. Ainda no início de seu envolvimento na entidade, o Sr. Tadahide tinha como atribuição percorrer as ruas de Pinheiros, visitando as casas de japoneses angariando fundos para a realização do undokai. Certa ocasião, ao voltar de uma dessas missões, contou com muito entusiasmo a visita que fizera à casa do Sr. Gervásio Inoue, Presidente da então poderosa Cooperativa Agrícola de Cotia. Ele residia no bairro nobre do Alto de Pinheiros. Integralmente envolvido nas atividades da entidade, por longo tempo, foi seu Tesoureiro. Em várias ocasiões o Sr. Tadahide se via atarefado em controlar as finanças do Pinheiros Shimbokukai.
Fundou o Departamento de Haiku, tendo sido chefe desse setor até o seu falecimento. Haiku foi sua paixão. Dedicou-se a esta arte, de corpo e alma. Angariou não somente notoriedade mas também respeito, graças as suas conquistas como haicaista. Colecionou vários troféus e diplomas. Destacam-se três certificados pela participação em certames internacionais realizados no Japão. Merecedor de confiança irrestrita do Presidente Sr. Tsutomu Kamimura, o Sr. Tadahide foi designado como Editor Chefe da equipe encarregada de escrever a história do Pinheiros Bunka Shimbokukai por ocasião da comemoração dos 35 anos da entidade. Foi um trabalho árduo para o Sr. Tadahide, principalmente em razão da fragilidade de sua saúde. Foram vários anos de pesquisas em documentos, coleta de informações, de depoimentos. E, finalmente a redação e confecção do livro. A edição em japonês foi finalizada em janeiro de 2000. Esta obra se tornou referência do livro “Piratininga, 50 Anos – Uma História da Geração Nissei” (documentário sobre a Associação Cultural e Esportiva Piratininga), onde constam várias citações sobre o trabalho do Sr. Tadahide.
OBRAS INACABADAS
Mesmo com a saúde muito debilitada, lançou-se a escrever a história da Família Misumi. Novamente, começou a organizar documentos e fotografias. Mas, o destino não permitiu que essa obra, talvez a mais importante, fosse concluída. Ao falecer deixou cerca de trinta folhas manuscritas. São letras em japonês bem organizadas, apesar de denotar que foram escritas com as mãos já trêmulas, em virtude das doenças que se instalaram em seu corpo. Faleceu no dia 16 de novembro de 2004, dois dias antes de seu aniversário. Levou consigo noventa e um anos de experiência e sabedoria. Sabedoria que deixou como legado, de várias formas, inclusive como haiku. Com muita propriedade disse seu genro Heishiro Kuriyama. “Pena que ele faleceu precocemente. Deveria viver pelo menos mais cinco anos para que outras pessoas pudessem usufruir um pouco mais de sua vasta experiência.”
20080920
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil