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O dia amanheceu xexelento. Tinha chovido a noite inteira. Foi uma chuva interminável. Gotas e mais gotas d’água. Eram as lágrimas de inúmeras pessoas que o amavam, Masakazu-san. Permita-me chamá-lo assim, da mesma forma que meu pai o chamava. Agora na esquife, seu corpo descansa tranquilo. Seu rosto transparece tranquilidade. Com essa serenidade o senhor se despede de nós. Lá fora, novamente a chuva se intensifica. É o choro incontido de todos que o amavam. O sepultamento de seu corpo foi adiado, mas a chuva não parou. Apenas amainou um pouco. Assim, o senhor nos deixou. Foi a segunda despedida para mim.
Uma semana antes estive em sua casa, pela primeira vez. Fui junto com minha mãe, minha esposa e minha irmã, acompanhando Ana Maria, a amiga comum de sua filha Ivone. Ao vê-lo senti reencontrar com meu pai. Meu pai que falecera em novembro de 2004, ou seja, cinco anos antes. Afundado em sua cadeira, pude visualizar apenas os seus braços e a cabeça destacando-se sobre a mesa. O rosto magro e os olhos profundos eram os mesmos de meu pai alguns dias antes de seu falecimento. O mesmo olhar meigo e carinhoso, escondendo muita sabedoria.
Masakazu-san, infelizmente não pudemos conversar muito através de palavras, pois a doença o impediu de pronuncia-las adequadamente. Mas, conversamos através do coração e do seu haiku escrito em kanji que, lamentavelmente, não sei ler. Ao me aproximar da mesa, impressionou-me os traços nítidos e firmes dos kanjis que o senhor escreveu. Sentado ao seu lado, tentando compreender as palavras que o senhor conseguia balbuciar, senti novamente a sensação de estar conversando com meu pai. Eu e meu pai fizemos isso em diversas ocasiões. Foram momentos agradáveis em que suguei muita sabedoria. Na casa dele, na minha chácara que o senhor não conheceu. Meu pai queria tanto que o senhor lá fosse para ver a enorme pedra incrustada no meio das árvores.
Todos nós sentimos que o senhor tinha muito para nos falar naquele domingo, dia 5 de julho de 2009. Infelizmente não fui capaz de entender muito do que o senhor dizia apesar do esforço incansável de suas filhas e esposa em traduzir as palavras balbuciadas. A avidez com que o senhor queria se comunicar comigo mesmo através da escrita, acabou esgotando-o. A dificuldade de segurar a caneta e escrever foi se intensificando. Quantas coisas o senhor tinha para nos contar! Talvez relembrar muito do que o senhor conversou com meu pai nos bons tempos em que ambos ficavam horas e horas debruçados na mesa escrevendo e analisando os diversos haikus. Senti isso ao oferecer a minha mão que o senhor segurou com todas as forças que ainda lhe restavam. Com as mesmas mãos que durante muito tempo de sua vida foram judiadas com muitos calos que a vida sofrida lhe proporcionou. Assim como muitos dos seus contemporâneos que deixaram o Japão com a ilusão de enriquecimento fácil, mas que muito sofreram aqui no Brasil, o senhor também teve seus momentos de dificuldades. Mas, seu sacrifício não foi em vão. Vejo em seu filho, suas filhas e netas o reflexo do seu sucesso. A vitória de quem muito lutou, principalmente para proporcionar boa educação aos filhos. Não bastasse isso, o senhor ainda conseguiu realizar muitos dos seus sonhos. O senhor sempre dizia que o ser humano tem que ter sonhos. Assim o senhor, além de escrever belos haikus, ainda conseguiu produzir magníficas obras de arte em cerâmica, como a que doou para minha mãe ao nos despedir naquele dia. Pude ainda contemplar, mesmo que rapidamente, as belas pinturas expostas na parede da sala. O senhor fez questão que sua filha nos mostrasse esses sonhos realizados. Foram poucas horas de convivência, mas intensas em emoção, em sentimentos trocados de pai para filho que se tornaram inesquecíveis. Uma semana depois o senhor se despedia. Pela segunda vez, para mim ...
O Sr. Masakazu Yamaguchi nascido em 08/11/1917, faleceu em 09/07/2009. Era um grande amigo de Tadahide Misumi.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil