Conte sua história › Silvia XYZ › Minha história
Este é um pequeno resumo de uma grande história que um dia espero ter a oportunidade de contar na íntegra.
Nasci em 26 de julho de 1948, na cidade de Marília (interior de São Paulo). Filha de imigrantes japoneses, a sexta entre sete irmãos. Meu nome? Alzira.
Meus pais vieram ao Brasil crentes na promessa de uma vida melhor. É, as coisas não andavam bem lá no Japão pós-guerra. Então, o governo japonês dizia que o Brasil seria um bom lugar, que havia terras, trabalho para todos, e o melhor de tudo, havia PAZ.
Minha mãe era filha de senhores feudais e sua família possuía plantação de arroz, o que representava muita riqueza e poder. Apaixonou-se por meu pai que era oficial da marinha, mas, que apesar de ser admirado por sua beleza e altivez, era visto como um rélis plebeu. E, eles se uniram sem a aceitação da família, simplesmente inaceitável para a época.
Mesmo depois de juntos não era fácil suportar os olhares de reprovação, e numa busca desesperada por paz, tanto em relação à guerra quanto à paz espiritual, eles decidiram vir ao Brasil.
Meu pai sempre foi muito orgulhoso, hoje acredito que seu orgulho o tenha levado à morte.
No Brasil não sabíamos falar português, no Brasil não tínhamos terra alguma, no Brasil todos zombavam de nós, no Brasil trabalhávamos como escravos, no Brasil passávamos fome, frio e medo.
Minhas recordações são de quando eu tinha três anos, meus pais trabalharam muito para comprar um pedaço de terra e iniciar uma plantação própria, mas, quando os resultados estavam por vir, homens maus vieram com armas de fogo dizendo que deveríamos deixar o lugar ou nos matariam.
Existia até uma delegacia, fomos pedir ajuda, mas a justiça não existia e fomos aconselhados a ir embora se prezássemos nossas vidas.
Mudamo-nos para o Estado do Paraná, revoltado meu pai bebia e destruía tudo o que encontrasse pela frente, minha mãe cavava buracos na terra e nos escondia sob folhas secas para apanhar sozinha dentro de casa.
Não sabia se sentia ódio ou pena daquele homem que se transformava num tirano, e daquela mulher que aceitava tudo, calada.
Tudo o que ele queria era voltar pro Japão e tudo que ela queria era acordar daquele pesadelo, tinha vergonha, vergonha de falar, vergonha de ir embora e abandonar tudo, vergonha de si e do pensamento alheio.
Papai não queria que fôssemos à escola, brigava se conversássemos em português e dizia que logo voltaríamos à nossa terra. Sabíamos que não aconteceria, mas, fingíamos acreditar indo à escola escondidos, estudando em segredo, enquanto ele não decidia nos levar para trabalhar.
Trabalhavam na lavoura e nos cafezais, mamãe, papai e os filhos maiores, sendo que, os homens podiam estudar, pois teriam que sustentar uma família mais tarde, e as mulheres, como seriam entregues à família do marido, deveriam ficar em casa aprendendo prendas domésticas e cuidando dos irmãos menores.
A vida passava sem nada que valha mencionar. Entre nós irmãos, um cuidava do outro.
Eu devia ter uns cinco anos quando comecei a acompanhar meus irmãos à escola. Não tinha idade suficiente para me matricular, mas não havia outra opção, já que os que não estudavam iam trabalhar. E eu adorava!
Só não gostava quando estava muito frio, porque eu só tinha chinelos e as pessoas vendo meus pezinhos roxos, ficavam perguntando se eu não estava com frio, ora, é claro que estava, mas sempre respondia que não, ninguém ia me dar nada mesmo.
Sentava-me num canto qualquer e brincava de aluna, naquela época as escolas do interior iam até a quinta série do fundamental (conhecido como 1ºgrau), as séries eram divididas dentro de um mesmo ambiente, cada grupo de fileiras representava uma série.
Mas, diversão mesmo era na hora do recreio! Eu esperava o sinal para todos voltarem aos estudos e atacava as migalhas e restos que caiam por terra ou, eram desprezados pelas crianças pertencentes a famílias mais abastadas. Eu não tinha obrigação de voltar para sala no horário mesmo.
Ah! Barriguinha cheia! Vamos estudar!
As matérias eu já sabia, pois sempre acompanhava meus irmãos. A professora perguntava, e eu cochichava a resposta, sempre certa, antes de qualquer aluno.
Certo dia, uma nova professora chegou à cidade, ia lecionar naquela escola.
Logo em seu primeiro dia de aula ela me notou:
- Olá pequena! Você já estuda aqui!?
Balancei a cabeça afirmando.
- Qual o seu nome?
- Alzira – respondi timidamente.
- Você não parece Alzira, você parece Maricotinha! Posso te chamar assim?
Balancei novamente a cabeça afirmando.
Os dias passaram e a professora que soube depois se chamar Eunice, anunciou a data para avaliação da 1ª para 2º série. Olhava para mim enquanto comunicava à classe e, de repente, perguntou-me, ¾ Maricotinha também vai fazer, não vai?
Dei de ombros em resposta, pois não sabia se poderia fazer a avaliação, nem matriculada eu estava.
Minha atitude levou-a a pensar que eu estava insegura, então ela começou a me testar, pedindo que eu escrevesse no quadro coisas como o ABC (alfabeto) e algumas continhas de operações simples de matemática, além de fazer perguntas de ordem religiosa.
Eu mal alcançava a lousa, e escrevia equilibrando-me na pontinha dos pés.
Ao ver o meu desenvolvimento ela se emocionou e me abraçou dizendo que eu era capaz e que deveria sim, fazer a avaliação.
A professora Eunice resolvera tudo a respeito da minha matrícula, pude então fazer a prova.
Duas outras professoras ficaram encarregadas da correção da prova, o marido da professora Eunice chegou para buscá-la, mas, ficamos aguardando o meu resultado, ela se recusava a ir embora sem antes saber.
Até que anunciaram – Alzira Tazuko Nagate, 7.7, aprovada!
Festejamos, despedimo-nos, tomei o rumo de casa enquanto prometia a mim mesma que seria professora quando crescesse. Estava feliz, grata a Deus, jamais esqueceria aquela tarde.
Mas a vida não é fácil assim, crescemos acumulando responsabilidades, mãe doente pra cuidar, trabalho pra sustentar, casamento pra ser normal, filhos pra criar e a vida passa sem volta...
...Estou por completar 60 anos, estudante de Pedagogia. Dentro do coração a certeza de realização e o orgulho de ter vivido cada dia com a garra de um leonino.
As opiniões emitidas nesta página são de responsabilidade do participante e não refletem necessariamente a opinião da Editora Abril
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil