Conte sua história › Kanetaro Ogura › Minha história
Logo que chegaram ao Brasil foram levados à Fazenda Guarany de Moura Andrade e Cia, próxima da estação Atalaia, onde ficaram cerca de um ano cuidando da lavoura de café. Daí, mudaram-se para a Fazenda Alto Alegre, em Olímpia, onde com apenas mais um ano, graças às oito mãos produtivas, fizeram logo a independência arrendando uma propriedade de quase 15 alqueires, onde passaram a cultivar o algodão, com o qual se deram, novamente, muito bem. Se bem que, nem tudo foi apenas favorável à família. Nessa época, perderam Katsuo, ainda bebê, devido a uma varejeira que penetrou em seu ouvido, enquanto dormia em uma caixa de cebola coberta por um saco de estopa, à sombra de alguma árvore enquanto os demais trabalhavam. Mas, afora essa ocorrência, depois da aquisição dessas terras, foi só progresso para a família, cultivando além do algodão, milho, feijão e até arroz. Começaram a arrendar terrenos “por todos os lados”, conforme afirmaram os tios para mim, até que, por volta de 1939, ou seja, sete anos apenas após a chegada ao Brasil, compraram uma fazenda com cerca de 200 alqueires, em Palestina, próximo de Nova Granada! Em tudo, “tinha a mão do papai (Kanetaro)”, garantiram os tios para mim.
Durante 15 anos a fazenda prosperou, ou, pelo menos, proporcionou a todos os membros da comunidade, que aí viviam (mais, pelo menos, 4 outras famílias de colonos), um modo de vida totalmente descontraído e sem necessidades materiais. As moradias, os armazéns, o depósito, o paiol, a vendinha e até mesmo a parte coberta do imenso mangueirão, desenhava no local, um perfil que muito parecia com uma pequena vila, alegre e progressista, onde no final do dia, após a labuta, praticava-se o esporte (tio Yoshio era bom no salto com vara), ou à noite, se reuniam para ouvir o som do violão no dedilhar do tio Haruo. Nos períodos diurnos, o que vêm aa minha memória são as “garupas” do cavalo que pegava com o tio Ichio trotando, vistoriando o gado, correndo a cerca, enfim, explorando a fazenda. Mas, lembro-me também de quando, em uma pescaria, ele se defrontou com uma onça e que, com sua reação de susto, cada um fugiu para o lado contrário do outro. Daí, outras lembranças mais vêm à minha mente, como caçar nambus e codornas com tio Tetsuo; das muitas vezes em que ficava em cima do arado enquanto ele, manejando-o, ia e vinha revolvendo a terra; sem contar a quantidade de melancias que rachamos em troncos caídos para saborearmos somente o miolo, no meio daquele algodoal. Mas, minha “obaatchan” (avó) Kiyo também não me fugiu à observação. Ela ia às plantações de banana, colhia-as e em sua estufa improvisada (meio tambor) deixava-as para amadurecimento. Enquanto agilmente fazia isso, habilmente me perguntava se minha mãe (sua filha) estava “gorda”, a fim de saber se estava grávida.
Mesmo ainda garoto, recordo-me de que a imagem de meu avô Kanetaro, projetava em mim uma figura altiva e de quem me orgulhava muito! Sentia, sim, que as pessoas o respeitavam e gostavam muito dele, que tinha muitos amigos. Como sempre que podia me postava ao seu lado, testemunhei em muitas festas o fato de ele realmente ter muitos amigos. Outra coisa marcante para mim era contar a quantidade de garrafas vazias de cervejas embaixo da mesa que ele ficava, cujo significado parecia representar a capacidade de poder aquisitivo privilegiado. Por isso, agora, até compreendo melhor a decisão acertada dele, de sair da vila de Nigorigawa. Contava tudo isso para a tia Aiko e sentia que ela também se orgulhava do pai, pela capacidade de liderança e facilidade para amizades. Nessa época ele até quase morreu! Foi mordido por uma cascavel e, se não fosse pela presteza dos filhos, uma ocorrência dessa, naquele tempo, teria levado-o à morte.
A tia Kazuko também comparece à minha memória. Ela que como os demais, ia bem cedo ao trabalho na roça, e voltava tarde, com a roupa suja, bota e chapéu de aba larga... cansada. Mesmo assim, com muito carinho e paciência para comigo, trazia-me amendoins já descascados por ela! Comi muitos! Tenho muita gratidão por ela, também por isso.
Na verdade, fui um felizardo por poder ter estado com eles e vivenciado todas essas emoções. Foi uma época de ouro! Como em um paraíso! Até que, um dia a notícia, recebi com muita tristeza, de que tinham vendido a fazenda...
Isso, para comprarem um hotel de grande rotatividade no centro de São José do Rio Preto, mais ou menos em 1954. O Hotel Rio Preto, onde chegavam a fazer 1.500 refeições/ dia. Para se ter idéia do porte do hotel, localizava-se no terreno onde hoje é a rodoviária da cidade. Como tudo ia muito bem, odiitchan, que já tinha mais de sessenta anos de idade, além de ocupado também com outras questões sócio-culturais (leia a seguir), passou a responsabilidade dos negócios da família, a partir de então, ao filho mais velho, Ichio, conforme dita a tradição japonesa. Foi quando começou o declínio da situação econômica da família. Não por irresponsabilidade do filho ou má intencionalidade, mas por não ter o mesmo tino comercial do pai.
Começou por “entrar na conversa” de um consangüíneo que lhe vendeu terras inexistentes no Paraná, na onda da época de se comprar terras naquele estado, influenciada também por uma canção que estava nas paradas musicais chamada “Maringá”. Dois anos depois, do investimento da compra do hotel, não tinham nem hotel nem terreno no Paraná. Então, o tio resolveu partir para outra ousada empreitada e comprou um terreno em Dourados, no Mato Grosso, à prestações, devido à situação em que se encontravam após perda de quase todo o patrimônio, e contando com a venda dessa lavoura para poder pagá-las. Mas uma geada acabou com toda a primeira produção. Passaram anos para quitar essa dívida, através de um bar que montaram em São José do Rio Preto, onde moravam, e do incansável trabalho de costura das tias. Superaram mais essa.
Então, resolveram mudar-se para São Paulo, onde montaram uma banca de feira. Foi um bom negócio. Começaram, novamente, a progredir. Como alguns dos tios já estavam casados, a família começou a se desmembrar, ficando juntos apenas os solteiros com os pais. O tio Ichio, já casado, tentou montar um armazém em Santo Amaro. E novamente não deu certo. Os demais foram em socorro. Venderam todo o patrimônio relativo à feira, e as tias, com os seus árduos trabalhos de costura, arcaram novamente para a recuperação da família. Por isso, as superações dessas privações sempre tiveram como mérito o trabalho das irmãs, além da obaatchan que também sempre ajudava na costura, e o fez até os oitenta anos. Mas cada um, como seria normal, buscou seu rumo. As duas tias (Kazuko e Aiko) permaneceram até hoje juntas, além de acompanharem os pais, Kanetaro e Kiyo, até os seus últimos dias de vida. A conclusão que tiro é a de que Kanetaro, meu avô, mesmo no Brasil, provou a sua origem “sangue azul” e teve até momentos dignos e gloriosos dessa linhagem. Mas não posso afirmar o mesmo em relação ao seu final de vida. Da mesma forma, não posso afirmar que errou ao vir para o Brasil tendo a vida confortável e acomodada que tinha no Japão, além do “status”. Se tivesse ficado, por certo, seria uma pessoa frustrada por nem ter tentado buscar seu sonho. Ao contrário, ao vir para o Brasil, por sua preocupação inerente em relação à coletividade, deixou sua marca, e provavelmente, seguidores anônimos que passaram seus aprendizados às gerações seguintes. Ele acertou ao vir para o Brasil. Ao menos, seus filhos, meus tios e eu, estamos deixando essa homenagem a ele. E bem como à obaatchan Kiyo, que também segurou muita barra. Soube que foi até parteira de uma legião enorme da comunidade local.
As opiniões emitidas nesta página são de responsabilidade do participante e não refletem necessariamente a opinião da Editora Abril
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil