Conte sua história › Monja Coen/ Cláudia de Souza › Minha história
No total passei doze anos no Japão. Oito anos vivendo no Mosteiro de Nagóia e o resto praticando em outros templos. Em 1995, quando o templo zen da Liberdade, na Rua São Joaquim, foi reconstruído, Moriama Roshi me convidou para cuidar do templo. Como eu era brasileira e já tinha me formado, era adequado que eu viesse para cá. Mas havia também a possibilidade de eu ficar em templos no Japão, o que era muito mais sedutor para mim. Havia um templo belíssimo nas montanhas, perto do Monte Fuji, construído para receber os estrangeiros que quisessem conhecer o zen. E o plano era de que eu fosse para lá, e esse fosse o meu templo.
Só que eu me casei com um monge japonês, e esse casamento causou grandes alterações em toda a minha carreira. Eles não queriam dois monges cuidando daquele templo nas montanhas. Queriam que só eu ficasse lá. E é justamente o meu marido que levantou a questão: “Por que não vamos para o Brasil? Seria muito interessante ir para um país onde o budismo praticamente não existe.”
Então eu voltei para o Brasil. E fiquei espantada com o que vi. Eu e meu marido fomos assistir a uma cerimônia dos imigrantes japoneses e ficamos de boca aberta. Pensamos: “Nossa, mas que coisa mais antiga!”. E não era antigo no sentido de tradicional. Era velho. Por que os jovens da colônia japonesa não seguiam? Porque parou no tempo. O Japão hoje é um país moderníssimo, que está fervilhando de vida. E aqui não.
A outra coisa foi a discriminação pelo fato de eu ser mulher e brasileira. Havia uma senhora japonesa que dizia assim: “Aqui não é templo de mulher!”. E eu respondia: “Mas isso não existe mais. Eu aprendi o ofício de monja, sou reconhecida como tal no Japão.” Mas ela dizia: “Templo de mulher é templo pequenininho!”.
Ela ainda tinha resíduos da discriminação que as monjas sofriam antigamente no Japão. Elas ficavam sempre na retaguarda, trabalhavam na cozinha e na lavanderia dos mosteiros masculinos. Algumas podiam ouvir as palestras de longe. Até que, no Pós-Guerra, surgiu Kojima Sensei, uma mulher que abandonou o cargo de abadessa num mosteiro para fazer campanha no Japão todo pelo direito de as monjas usarem manto de cor – antes só podiam usar preto –, de terem suas discípulas, de fazerem cerimônias de enterros e casamentos. Tudo isso antes não podia.
Hoje a posição das monjas é equivalente à dos monges, mas o zen-budismo ainda é uma religião predominantemente masculina. A minha tradição, a Soto Zen, por exemplo, tem 30 mil monásticos, dos quais menos de 2 mil são mulheres. Na nossa sede administrativa não há nenhuma monja. São só homens que administram nossa instituição. A minha superiora no Mosteiro de Nagóia foi a primeira e, até agora, a única mulher a ter um cargo de conselheira. Isso em 700 anos de História.
O curioso é que, apesar do estranhamento no início – por eu ser mulher e brasileira – as senhoras de idade vinham me pedir para fazer as cerimônias memoriais em português. Elas diziam: “Meus netos não falam japonês, e eu não falo português para poder explicar. Explique a minha religião para eles!”. Então eu passei a rezar as missas em japonês e em português no templo da Liberdade. E quando eles viram que eu rezava em japonês e continuava falando em japonês depois que as cerimônias acabavam, eles se abriram. E aí começaram a falar pra mim sobre os gaijin. Como se eu não fosse gaijin.
E o templo começou a crescer. No final de semana, eu rezava umas dez missas por dia. Abri também um horário de meditação todas as manhãs. E começaram a vir mais pessoas. Nas palestras, que eu fazia às sextas à noite, nas quais vinham umas dez pessoas, começaram a vir sessenta, setenta. E tinha aula de caligrafia, kenjutsu, ninjutsu, caratê. Começou um movimento muito grande não só de japoneses, mas também de não-japoneses.
E aí a gente entrou numa briga antiga: as pessoas que fundaram o templo não queriam que os não-japoneses freqüentassem. Afinal, lá era o reduto deles, o lugar de manter as tradições, manter o contato com a Japão. Se lembrarmos que essa colônia foi muito abusada e maltratada quando chegou ao Brasil, é compreensível que eles quisessem manter alguns núcleos isolados. Mas nós estamos em outra época, não é verdade? E os filhos, netos e bisnetos desses japoneses já não são mais japoneses. Eles falam como brasileiros, amam como brasileiros, e têm algumas gotinhas de cultura japonesa dentro deles.
Depoimento ao jornalista Xavier Bartaburu
Fotos: Carlos Villalba e arquivo pessoal da Monja Coen
As opiniões emitidas nesta página são de responsabilidade do participante e não refletem necessariamente a opinião da Editora Abril
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil