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O SHOGUI é um jogo milenar, a versão japonesa do popular jogo de xadrez. Tal qual o seu equivalente ocidental o shogui é um jogo de estratégias e movimentos táticos que visam capturar o rei adversário.
O tabuleiro do shogui possui 81 posições (9x9), todas de uma mesma cor. Cada jogador inicia o jogo com 20 peças que possuem hierarquias e movimentos semelhantes aos do xadrez. Uma diferença marcante do shogui é que as peças conquistadas podem retornar ao jogo como integrante do arsenal do oponente que as capturou.
No começo dos anos 30 o jovem Komakiti Hirata iniciava o grande “shogui” da sua vida. Exímio artesão, Komakiti trabalhava em uma fábrica de “sakedaru” (barril para sake feito de tábuas de cedro suportado por aros de bambu) na província de Fukuoka. Seu amigo de infância e companheiro de ofício se chamava Kanekiti Yura. Naquela época a arte de fazer barris artesanalmente lhes propiciava uma renda razoável mas já havia fortes indícios de que a revolução industrial viria obsoletar o artesanato. O fantasma do desemprego em massa devido a mecanização chegava naquele rincão na ilha de Kyushu que também sofria como todo o resto do país a escassez de alimentos. A perspectiva para os dois amigos não era muito boa naquela profissão. Decidiram que deveriam fazer algo antes que o pior acontecesse. Seu amigo Kanekiti era solteiro e tinha mais opções mas Komakiti já estava casado com uma filha recém nascida. Quarto filho da família de Sanziro Hirata, Komakiti não tinha a menor expectativa de receber herança de seus pais.
Estratégia I . Trabalhar duro, acumular fundos
No shogui um jogador traça a estratégia de abertura para dar inicio a partida. Os movimentos são feitos uma peça de cada vez. O oponente por sua vez tenta armar o jogo conforme a sua estratégia. A cada jogada um novo cenário surge. O confronto dos oponentes no tabuleiro é uma imitação da luta que travamos no dia a dia. A vantagem é que no shogui as regras são pré-definidas, ao contrário da vida cujas regras nem sempre são conhecidas e muitas vezes aprendemos com os próprios erros.
Em 1934, Komakiti tomou a decisão de interromper o seu trabalho de artesão e embarcar num projeto audacioso para conseguir fundos e então começar um negócio próprio. Inscreveu-se para ir ao Brasil.
Junto com esposa Kiyoka e a filha Ayako de apenas dois anos, embarcou no porto de Kobe no navio Hawaii-Maru rumo ao desconhecido país na América do Sul. Na bagagem apenas pertences pessoais e um grande sonho. A idéia era trabalhar firme, juntar as economias e regressar a Fukuoka o mais rápido possível. Prometera fazer isso em cinco anos, acontecera o que acontecesse.
Komakiti e sua família chegaram em Santos em setembro de 1934 e foram parar numa fazenda de café em Presidente Venceslau, na região da Sorocabana. Moravam em casa de pau a pique, parede de coqueiro e teto de sapê. Não tinham energia elétrica, nem água encanada, além de mal falarem o idioma do país e comerem comidas estranhas a seus costumes.Trabalharam de sol a sol, sem descansar domingo ou feriado. Malária e outras doenças tropicais ceifavam vidas num lugar onde qualquer auxílio médico era remoto e quase inexistente. Aguentaram de tudo para poder concretizar o projeto traçado.
A vida se mostrou um adversário formidável e não deu moleza a Komakiti. Durante os primeiros quatro anos o casal teve duas filhas, Shizuko e Mizue, mas sem socorro médico, ambas sucumbiram de malária antes de completarem dois anos de vida. Em 1939 nasceu o primeiro varão, Yoshiyuki. Depois de cinco anos de trabalho árduo e sacrificado, o casal finalmente se preparava para regressar ao Japão. O dinheiro não era muito mas a vontade de regressar era maior. Mas a vida lhes reservava outra grande surpresa.
Estratégia II. Paciência e calma, esperar o melhor momento
No shogui às vezes somos surpreendidos com manobras do oponente que não conseguimos prever ou que não podemos evitar. Quando isso acontece o melhor é ter paciência e calma para analisar a situação e fazer os movimentos antecipando várias jogadas futuras. Na vida real as coisas são um pouco mais complicadas.
Em 1939 o Pacífico começava a arder em chamas no que seria o começo da Segunda Guerra Mundial. Cartas de parentes no Japão recomendavam paciência e aconselhavam aguardar o fim da guerra para iniciar a viagem de regresso. Na época muitos imigrantes que planejavam a viagem de volta não puderam concretizar os planos. Em decorrência, muitas famílias acabaram comprando sítios próximos uns aos outros e formaram comunidades de pequenos agricultores onde podiam ainda que precariamente viver os costumes e tradições do país de origem.
Enquanto esperava a oportunidade para regressar ao Japão , Komakiti também resolvera aplicar o dinheiro economizado na aquisição de trinta alqueires de terra em Presidente Venceslau. Infelizmente a transação foi mal sucedida. Sem entender a língua e envolvido numa longa encrenca judicial Komakiti acabou perdendo não só a terra mas todo o dinheiro que havia investido. Sem recursos, o plano de voltar ao Japão teria que esperar mais alguns anos. Naquele momento a prioridade era assegurar a sobrevivência da família que ja havia aumentado de tamanho. Yoshiko, Zilo e Saburo nasceram durante o periodo em que a familia esperava o fim da guerra.
Diz o ditado popular que "desgraça pouca é bobagem". Não bastasse o desastre financeiro, mais uma tragédia na família acabaria definitivamente com o sonho de um dia regressar ao Japão. Saburo, depois de completar dois anos de vida, foi vítima de um acidente doméstico fatal. A terceira morte na família em solo brasileiro e quatro filhos sobreviventes fez Komakiti repensar a estratégia.
Numa decisão radical resolveu “mudar de ares” e foi em busca de uma nova colônia de assentamentos em Guaimbe, na região de Lins (Noroeste de São Paulo), onde se cultivava o bicho da seda. Nesse lugar, entre famílias de imigrantes que se envolviam na disputa entre as facções ganhadora e perdedora (os katigumis e os makegumis), Komakiti e sua família empenharam num trabalho intenso para reequilibrar o orçamento e garantir as mínimas condições de sobrevivência. Falando paupérrimamente o idioma português, Komakiti entendeu que alimentar obsessivamente o sonho de voltar ao Japão colocara a família numa situação extremamente complicada. Nessa época nasceram Danshiro e Yukiko, respectivamente o oitavo e nono filhos do casal.
Estratégia III. Sacrifício dos irmãos mais velhos para benefício dos mais novos
A convite de conhecidos oriundos da província de Fukuoka, a familia Hirata mudou em seguida para a colônia no Bairro Corrego Olímpia, no município de Pacaembu, na região da Alta Paulista. Ali com a compreensão e ajuda de outros imigrantes a família conseguiu equilibrar o orçamento e pôde armar a estratégia para a próxima etapa de sua jornada. Em 1954 nascia Suetsugu, o caçula da família. Os filhos mais velhos freqüentaram a escola rural mas o aprendizado foi muito precário. Naquela comunidade todos falavam o japonês e o ensino fundamental em português não passava do quarto ano primário. Komakiti decidiu que o sucesso da geração dos filhos requeria uma decisão drástica: para que os filhos mais novos pudessem avançar nos estudos os filhos mais velhos teriam que se sacrificar. Isso significava parar os estudos e trabalhar para garantir o sustento da família.
Estratégia IV. Investir na educação dos filhos!
Essa decisão implicou na necessidade de mudar o estilo de vida. Em 1959, depois de vinte e cinco anos de trabalho árduo no campo, Komakiti e família se mudaram para Marília, Estado de São Paulo. Marília oferecia melhores condições para educar seus filhos mais novos. Os filhos mais velhos se empregaram como assalariados no comércio e na indústria local.
Com um pequeno comércio no Mercado de Marília, Komakiti e Kiyoka trabalharam duro para sobreviver e proporcionar condições para que seus filhos mais novos pudessem seguir os estudos. Felizmente a estratégia deu resultado positivo. Depois de alguns anos, dois dos três filhos se formaram engenheiros. Um deles se formou pelo conceituado Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e continuou os estudos até obter o título de mestre nos EUA. A estratégia de Komakiti abriu caminho para que a geração seguinte tivesse oportunidade de estudo. Hoje seus netos e bisnetos ja concluíram ou estão agora cursando escolas de nível superior.
“Tsumishogui” e Xeque-mate!
O final de uma partida (chamado “tsumishogui”) é geralmente cheia de lances emocionantes. Diferente do xadrez, no shogui uma grande vantagem material facilita mas não assegura a vitória. Como as peças capturadas voltam ao tabuleiro é possivel virar o jogo com uma estratégia bem armada e concatenada com movimentos táticos precisos. Tambem na vida real a quantidade de bens materiais acumulados nem sempre representa sucesso do indivíduo como ser humano.
Komakiti adorava shogui mas não teve tempo para jogar como gostaria. Talvez por isso nunca conseguiu passar de um jogador mediano. Mas a sua vida e seus ensinamentos mostram que ele foi um exímio estrategista e suas manobras táticas foram, no tabuleiro da vida, dignas de um grande mestre. Foram muitas as adversidades que enfrentou mas jamais se deixou sucumbir diante delas. Não bastasse a difícil vida de agricultor na época, ele sofreu três vezes a morte de um filho, um desastre financeiro que devastou sua vida e que deixou por terra o seu sonho de um dia regressar ao Japão. Em tudo isso ele nunca deixou de viver os valores morais que trouxe do Japão e de cumprir seu papel como chefe de família. Se hoje a segunda, terceira e quarta gerações gozam de um padrão de vida razoável neste país muito devemos a Komakiti e seu espírito incansável de luta.
Os que o conheceram de perto sabem que Komakiti sempre manteve um espírito brincalhão e otimista em relação a vida. Ele sempre procurava participar de eventos da comunidade em que vivia e animava as festas com cantos típicos (entre outros talentos Komakiti era cantor de “naniwabushi” e lutava sumô). Era fã das epopeias de samurai e adorava entreter seus filhos contando estorias recheadas de lendas e assombrações. A maioria dos contos continha alguma mensagem moral e filosófica, espírito de abnegação, retitude e senso de justiça. Atributos e qualidades com que ele procurou pautar sua vida e sobretudo passar a seus descendentes.
As armadilhas que a vida lhe preparou derrubaram Komakiti várias vezes mas ele sempre levantou depois de cada batalha. Após anos de lutas incansáveis, finalmente em 1980, Komakiti retornou a seu tão sonhado país natal para visitar amigos, familiares e o tumulo de seus antepassados. A seu convite, Kanekiti Yura, seu amigo de infância que resolvera vir ao Brasil, também retornou ao Japão na mesma viagem. Juntos cimpriram a promessa ainda que com um atraso de quase cinqüenta anos. Xeque mate. Banzai!
Em todos esses anos Komakiti teve sempre ao lado uma figura forte que em silêncio o acompanhou na sua jornada, apoiando-o nos momentos mais difíceis, regozijando nas suas alegrias e sobretudo assegurando a educação dos filhos. Sua preocupação era que seus filhos vivessem os valores dos nikkeys e que, acima de tudo, se tornassem cidadãos exemplares na sociedade brasileira. Essa figura é Kiyoka Hirata, minha mãe. Sem ela esta história teria sido diferente e seu desfecho seria outro.
Meu pai, Komakiti, nos deixou em dezembro de 1983 em Campinas. Minha mãe foi juntar se a ele em fevereiro de 1997.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil