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Dona Nobuko assistia à televisão e, através de um telejornal, ficou sabendo da possibilidade de um confronto entre as seleções do Brasil e Japão em uma competição internacional de futebol. Ao ser questionada sobre para qual time torceria nesse eventual duelo, foi enfática em sua resposta. “Claro que vou torcer pelo meu país, o Brasil. Só nasci no Japão. Tive minha vida aqui. Sou brasileira”, diz, com um leve sotaque, a imigrante japonesa de 96 anos, viúva, filha de Kozaburo Umebayashi e Assa Umebayashi, mãe de seis filhos, avó de nove netos e sete bisnetos.
A história de Nobuko Mizuka, provavelmente, é a mesma de milhares de japoneses que deixaram a Terra do Sol Nascente em busca de uma oportunidade de vida melhor num país chamado Brasil. Perseverança, suor, sofrimento, recompensa e dignidade são alguns dos elementos das histórias de famílias japonesas como a Mizuka, Akita, Suzuki, Nakagawa e Wada, estas espalhadas por todo território verde-e-amarelo.
Nascida no dia 15 de outubro de 1923, na província de Kyoto, Nobuko Umebayashi deixou, junto com seus pais e seus dois irmãos, o Japão com menos de um ano de idade, a bordo do navio Shikago-Maru, cujo destino era o porto de Santos, no Brasil. “Foi uma viagem longa e angustiante”, conta, recordando que o sentimento que dominava as dezenas de famílias japonesas a bordo era o da incerteza, já que rumavam para um país cuja cultura, língua e costumes eram totalmente desconhecidos delas.
Logo que aportou em Santos, a família Umebayashi seguiu o rastro dos outras famílias japonesas, em direção a São Paulo, mais precisamente à “Casa dos Imigrantes”, onde permaneceu por alguns dias, até ser contratada para trabalhar como colonos nos cafezais do noroeste paulista. Durante cinco anos os pais de Dona Nobuko trabalharam árdua e submissamente nas lavouras, mas foi o suficiente para juntarem um dinheiro e, junto com outras famílias japonesas, comprarem uma terra própria, nos arredores de Araçatuba. Foram mais cinco anos de muito suor derramado na terra. Durante esse período, Nobuko e seus irmãos começaram a freqüentar a escola, na qual aprendiam tanto a língua portuguesa como a japonesa, na tentativa de manter a cultura nipônica. Também foi quando as famílias Umebayashi e Mizuka, ambas de Kyoto, se conheceram, aproximando os jovens Nobuko e Taichiro, que, anos depois, viriam a se casar.
A família Umebayashi decide abandonar aquela que lhe rendeu o sustento e a esperança no início da jornada imigrante, a lavoura, e partem para a pequena Guararapes, cidade interiorana de onde saíram personalidades como o jornalista Hermano Henning e o pintor Manabu Mabe. Uma humilde casa e um bar foram as primeiras propriedades adquiridas por Kozaburo Umebayashi, isso em meados de 1930.
Junto com a venda do bar da família de Nobuko e a aquisição de uma peixaria veio a 2a Guerra Mundial. Foi um período muito difícil para os imigrantes japoneses, já que o Japão fazia parte do chamado Eixo, junto com a Alemanha de Adolph Hitler e a Itália de Benito Mussolini, e o Brasil apoiava os Aliados, EUA, França e Inglaterra. “Os japoneses, aqui, eram proibidos de usar sua própria língua, as escolas de ensino de língua japonesa foram todas fechadas, os jornais da colônia deixaram de circular e era proibido qualquer tipo de reunião entre eles. Caso não acatassem essas proibições, seriam presos”, recorda com tom melancólico Dona Nobuko.
Apesar de toda essa desunião no mundo, uma união era selada em 1942, a de Nobuko e Taichiro, em pleno ápice da 2a Guerra Mundial. Numa cerimônia simplicíssima e secreta, que contou com a presença de apenas seis pessoas (o casal e os padrinhos), devido à proibição de aglomeração de japoneses, o jovem casal de imigrantes selou o compromisso do matrimônio. O clima não poderia ser de festa, já que havia a sensação de medo durante o casamento. “Havia ‘supais’(proveniente de ‘spy’, que em inglês significa espião) infiltrando-se no meio da colônia japonesa para denunciar qualquer atividade suspeita. Por incrível que pareça, meu casamento era uma atividade suspeita”, relata Dona Nobuko. Outro medo sentido durante a guerra foi em relação à milícia Shindô Remmei, formada por extremistas japoneses que não acreditavam na derrota de seu país natal na guerra, perseguindo e até matando aqueles compatriotas que aceitassem a queda nipônica no front.
A explosão das bombas nucleares nas cidades de Nagasaki e Hiroshima, no Japão, a morte de milhões de compatriotas e o histórico pronunciamento do imperador japonês Hiroito no rádio, rebaixando-se e pedindo desculpas ao mundo inteiro pelas tragédias da 2a Guerra Mundial, afetaram o sentimento até da colônia japonesa aqui no Brasil. “Foi muito triste. O imperador é como um Deus para os japoneses. Todos se sentiam humilhados e até os japoneses mais velhos, os ‘ditians’ (avôs) choravam feito crianças”, lembra Dona Nobuko. “Mas a gente procurou esquecer tudo isso e a vida continuou...”, completou.
Mesmo com a alma ferida, os imigrantes japoneses reergueram-se e, como disse Dona Nobuko, a vida continuou. Assim foi com ela e seu marido, que abriram uma alfaiataria no centro de Guararapes. Na mesma velocidade que progredia o alfaiate Taichiro, vieram os filhos, Itiro, Nilo, Saburo, Yoko, Yaeko e Ciro. Todos foram educados em escolas de “gaijins” (que não são japoneses) e, já jovens, tiveram como destino a capital, onde cursaram faculdades.
Apesar do distanciamento, Dona Nobuko e seu Taichiro estavam muito satisfeitos em ver seus filhos tomando rumos próprios na vida, quase sentindo a sensação de “missão cumprida”. “Mesmo com todos os filhos indo para São Paulo, nossa casa não ficou vazia. Sempre hospedávamos os aprendizes da alfaiataria”, explica. Foram dezenas de rapazes que passaram pelo Mizuka Alfaiate, aprendendo a arte da tesoura e da agulha. “Ixi, nem sei quantos aprendizes o Taichiro teve. A maioria nem virou alfaiate. Mas a gente tem orgulho deles, afinal tratava como se fossem filhos”, afirma. Um dos aprendizes foi Nilo, o segundo filho mais velho de Nobuko e Taichiro, que trabalhou vários anos ao lado do pai, mas acabou virando funcionário do Tribunal de Contas do Estado.
A família sempre representou para Dona Nobuko o mais importante da vida e a chegada dos netos só trouxe mais felicidade para o já idoso casal. São nove netos no total que levavam alegria à casa em Guararapes nas férias e feriados. Presentes, sorvetes, refrigerantes e passeios pela cidades eram alguns dos mimos dados pelos avós. “No muro da casa lá em Guararapes tinha pintada a propaganda de uma lanchonete, chamada ‘Kikau’, daí quando nós estávamos chegando perto da entrada, sempre gritávamos dentro do carro ‘Kikau’, ‘Kikau’, Kikau’”, relembra o neto Hugo Akita, 29, filho de Yaeko e Mário, engenheiro de computação.
No ano de 1987, essa distância entre Dona Nobuko, os filhos e os netos diminuiu. Lamentavelmente por um motivo de doença. Em julho daquele ano, seu Taichiro sofreu um derrame cerebral e, gradativamente, sua saúde foi se agravando. Devido ao delicado estado de saúde de seu marido, Dona Nobuko decidiu morar com uma das filhas, Yaeko, casada com um médico que poderia estar acompanhando mais de perto os cuidados a Taichiro. “Por um lado, era bom poder ficar mais próximo da minha mãe e do meu pai, mas por outro, era triste ver uma pessoa como meu pai, muito ativa e trabalhadora, com dificuldades de andar e até de falar. O que eu fazia por ele era o mínimo se comparado ao que minha mãe fez, não só naquele momento, mas na vida inteira. Ela foi uma companheira, nos mais de cinqüenta anos de casamento”, diz
Yaeko.
Dona Nobuko e seu Taichiro, então, mudaram-se para a pacata Artur Nogueira, cidade localizada próxima a Campinas. Antes, venderam todas as propriedades que tinham em Guararapes, dentre elas a casa e a alfaiataria. Se já não bastasse a dor da doença, Taichiro sofria com a dor da perda, tanto de seu ofício quanto dos amigos. Como na vida inteira, Dona Nobuko estava sempre ao seu lado, apoiando. Construíram uma casa, vizinha à da filha, na qual recebiam em quase todos os finais de semana os filhos, os netos, outros parentes e amigos, alguns de Guararapes. As sessões de fisioterapia, os passeios matinais em cadeira de rodas e a convivência com diferentes enfermeiras em casa marcaram os últimos anos de vida de seu Taichiro. Havia momentos em que Dona Nobuko, sabendo que o marido não tinha forças para falar, sabia o que ele queria, apenas pelo olhar, pela cumplicidade de mais de cinqüenta anos de convivência. Seu Taichiro teve forças para alcançar as bodas de ouro de seu casamento, em 1992, mas no ano seguinte, às vésperas do Reveillon, ele teve que partir.
Todos sofreram, mas Dona Nobuko sofreu mais, até em certos momentos calada, pois sentia a falta do marido. Tal vazio era difícil de ser preenchido, mas a família, retribuindo tudo o que ela fez em sua vida inteira, não mediu esforços para apoiá-la, principalmente em um de seus momentos mais difíceis após a perda de seu Taichiro, na luta contra o câncer.
Em 1996, devido a alguns sintomas, foi ao médico urologista e, após alguns exames, diagnosticou-se um tumor maligno na bexiga. A retirada do câncer foi imediata e, logo após a operação, foi iniciada a quimioterapia, uma das fases mais difíceis do combate a essa doença. Apesar de sua aparência franzina, nos poucos mais de 1,50 metro de altura e 41 quilos, Dona Nobuko foi forte, resistiu bravamente ao tratamento e, depois de três anos lutando contra o câncer, está curada. Devido à idade, ela ainda tem certos cuidados em relação à saúde, como hipertensão e problemas na visão, mas nada que a impeça de ter uma vida normal.
A vida impôs muitas barreiras à Dona Nobuko, como a xenofobia na época da 2a Guerra Mundial, seis filhos e um marido para cuidar e doenças graves. A serenidade e perseverança fizeram com que essa “brasileira de carteirinha” sobrevivesse, sempre com um sorriso no rosto e vontade de ajudar os outros. “Quando era moça, tirei a identidade aqui no Brasil e ficou registrado que nasci numa cidade chamada Sampaio Vidal, perto de Guararapes. Mas todo mundo sabe que nasci em Kyoto, no Japão. Assim, posso dizer que sou brasileira de carteirinha e coração”, declara Dona Nobuko.
Por Eric Akita, jornalista, neto e admirador dessa grande mulher
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil