Conte sua história › Nádia Sayuri Kaku › Minha história
Lembro como se fosse hoje: se, no começo, fazíamos contagem regressiva para chegar logo ao fim, quando o fim chegou, queríamos que voltasse tudo para o começo de novo. Foram só 3 meses de Japão, mas o suficiente para o meu organismo se revoltar contra mim no dia da volta e me fazer passar as 24 horas de vôo mais as 7 horas de escala com nariz sangrando, tossindo, com gripe e sem voz. Isso tudo somado ao fuso horário, parecia um baita sacrifício voltar. E olha que a vida não era fácil: às vezes, eram 6 horas de zangyou, outras eram duas semanas sem folga. Mas o Brasil e a vida real chamavam, as aulas da faculdade já haviam começado e o arubaito precisava chegar ao fim.
Já disse que as lembranças de fábrica são as que menos ficam. Mas o Japão em si é algo impossível de esquecer. E até hoje eu tento desvendar qual foi o mistério que me afetou e afeta tantas outras pessoas. No primeiro mês de volta no Brasil e ainda naquele clima zen que o Japão deixa nas pessoas, dei de cara com um livro que tinha uma citação – no mínimo – instigante, feita por um canadense que passou boa parte de sua vida no arquipélago e que também foi afetado pelo mistério que ronda o país. O trecho é o seguinte:
“Eles o chamam de Complexo de Seidensticker, por causa do estudioso e tradutor americano, e ele descreve os sentimentos ambivalentes que atormentam residentes estrangeiros que moram por muito tempo no Japão, um pêndulo de emoções se alternando entre atração e repulsa, afeto e raiva – indo e vindo. Mas a imagem é falsa. Esses sentimentos não se alternam. Eles são inseparáveis. Tão inseparáveis como cheiro de urina e de incenso no mesmo vento.O mesmo festival que o encanta o exclui. As pessoas não amam e depois odeiam e depois amam o Japão como um metrônomo. Elas o amamodeiam, querem ficar pertolonge dele, irficar.” (De Carona com Buda, Will Fergunson)
Mais além de conceitos que parecem palavras tiradas do 1984, acho que dá para parar e pensar no que ele escreve. O Japão é contraditório por natureza e afeta a todos – sem exceção – de alguma forma. Não sei explicar, mas quem já foi sabe como é. Fazer um mochilão de 10 dias pelo arquipélago me fez conhecer vários “Japões” que convivem harmoniosamente um com o outro. Cada qual no seu extremo, provocando contrastes que se equilibram. Outro dia, ouvi que o Japão é marcante porque afeta os nossos cinco sentidos. Será?
Paladar: tudo é doce, menos os doces e o açúcar não-feito de cana. O chocolate não enjoa e os pães podem ser desde feitos de melão até recheados com yakissoba. O karê é algo constante e você encontra até na pipoca. Donuts, maionese, morango também existem no Brasil, mas o do Japão parece diferente. Por quê? Ah! Não podemos esquecer do McTeriyake e do incrível item “sumairu” (スマイル) que custava 0円 no menu do McDonald’s.
Visão: a luz é diferente e ponto. Muito nítido nas fotos e acredito que perfeitamente explicável pela posição do Japão no globo terrestre. Mas acho que os letreiros luminosos, os anúncios e fachadas coloridas também afetem de alguma forma nosso olho. Ainda que sem poluição visual, visto que, por exemplo, Shibuya está mais para um lugar bonito, do que um lugar perturbador devido ao excesso de luzes.
Tato: frio, vento, chuva, neve. São diversas formas de sentir – literalmente – o Japão. Talvez a temperatura seja a forma mais forte e fácil de perceber. O ar seco, as roupas quentinhas, o futon, o ar-condicionado e a água quente do ofurô. Precisa mais?
Olfato: o cheiro é diferente, mas não sei explicar. Talvez fosse o frio, talvez o vento. Mas não era igual ao do Brasil.
Audição: Tudo fala, apita ou produz qualquer tipo de som. A panela de gohan, a máquina de lavar, a cancela do trem, o semáforo de pedestres. Sem contar com os políticos fazendo campanha com megafone e luvas brancas e os atendentes de qualquer loja dizendo “irasshaimase” e “arigatou gozaimasu”.
Tenho certeza que o Japão que eu conheci não tem nada a ver com o Japão que meu avô vivia antes de vir para o Brasil ou até mesmo o Japão que ele voltou a visitar depois de adulto. Tudo muda, evolui e aumenta, num processo constante e mundial. Os extremos se encontram, conversam e vão embora. Se juntam, separam, fundem e somem. O Japão é assim: JR no eki, touchscreen, doramas, animes, JPOP, Totoro e almonds.
E talvez seja esse o Japão que eu goste.
Não, não estou dizendo que não admire a parte tradicional: culinária, artes marciais, origami e família real. Até quem sou eu para julgar isso? Só digo que o universo atual, a cultura pop e até a forte influência americana também é Japão. Aquele Japão que eu e muitos outros jovens precisaram descobrir para começar a gostar (ou gostar ainda mais) da terra de seus antepassados.
Em tempo: tirei as fotos de arquivo da minha galeria de fotos e coloquei algumas cenas do Japão que eu conheci.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil