Conte sua história › Rita de Cássia Arruda › Minha história
Quando Kaoru e Aki vieram para o Brasil, em janeiro de 1996, meu irmão André estava então de partida para o Japão. Naquele ano, pela primeira vez na história da Universidade de Brasília (UnB), concretizava-se um intercâmbio cultural entre os estudantes daquela instituição de ensino superior e os da Universidade de Kyoto. Os três cursavam Letras-Tradução.
Antes de partir para a Terra do Sol Nascente, André nos apresentou às japonesinhas, que na ocasião contavam 21 anos, recomendando-nos tomar conta delas. Foi empatia à primeira vista. Minha família logo se afeiçoou às meninas. Embora as duas não tivessem ficado hospedadas em nossa casa - já vieram do Japão com residência definida, pelo intercâmbio - estavam sempre conosco; especialmente nos finais de semana. Quase sempre dormiam aqui, só retornando a seu domicílio no domingo à noite.
Guloseimas
Nessas ocasiões, em seus caderninhos, Kaoru e Aki anotavam as receitas que invariavelmente preparávamos: pão de queijo, brigadeiro, biscoito de povilho, cuscuz e outras tantas. Minha mãe costumava dizer, de brincadeira, que a imigração viria atrás de nós, multar-nos, por explorarmos as meninas na cozinha todos os finais de semana. Por nós, as duas foram afetuosamente apelidadas de "Kaki' - numa alusão a seus nomes - a dupla dinâmica.
No início, assim que chegaram, respeitando a tradição nipônica, nós não as tocávamos; apenas fazíamos uma reverência ao encontrá-las. Com o passar do tempo e à medida em que os laços de amizade iam-se estreitando, o afeto foi igualmente se "abrasileirando" e já nos cumprimentávamos com três beijinhos no rosto e, na despedida, ainda com um abraço apertado.
Batalha
Também passamos por algumas situações de estresse. As meninas moravam longe da UnB - localizada na Asa Norte - e a distância tornava a jornada diária das duas cansativa. Tinham que tomar quatros ônibus, todos os dias, para ir e voltar. Além disso, talvez por residirem em um dos bairros mais nobres de Brasília, o Lago Sul, o aluguel que mensalmente pagavam era demasiadamente caro.
Notamos, então, que Kaoru e Aki andavam visivelmente cansadas e perguntamos o porquê. Discretas que eram, apenas no final acabaram confessando. Foi então uma aventura o que se seguiu. Tivemos que, literalmente, resgatá-las da casa onde residiam. Não antes sem os veementes protestos da dona. Fez-se mesmo necessário ir a UnB, explicar a situação das meninas ao colegiado, e oficializar um pedido para que a Universidade revisse a situação de ambas. Somente depois dessa "batalha" conseguimos acomodá-las em uma Superquadra próxima a UnB. Tudo feito dentro dos trâmites legais; supervisionado pela professora responsável pelo intercâmbio. Assim, as duas tinham apenas que atravessar uma avenida para chegar ao campus.
Música
Como nem tudo são lágrimas, também costumávamos nos divertir muito. Certa vez, fomos assistir a um show do Gilberto Gil. Minha mãe foi conosco; as meninas a chamavam de "nossa mãe brasileira". Quando Gil começou a cantar "A Paz", emocionadas, Aki e Kaoru choraram ao ouvir os versos da canção em que o compositor baiano diz que "uma bomba sobre o Japão fez nascer o Japão da paz". Kaoru, por sinal, é de Hiroshima. Aki é de Kyoto. A alegria e a energia de Gil, contudo, rapidamente as contagiaram e logo as duas estavam sorrindo novamente.
Esse, porém, não foi o único show a que fomos. Na ocasião, o governo do Distrito Federal tinha uma rica agenda cultual e seu "Projeto Temporadas Populares" fazia sucesso. Artistas do calibre de Zizi Possi, João Bosco, Zélia Ducan, Ivan Lins, Edu Lobo e Beto Guedes, entre outros, costumavam se apresentar na cidade e os ingressos, naquela ocasião, eram vendidos a R$ 3.00 (para estudantes) e R$ 6.00 para o restante do público. Foi assim que as colocamos em contato com nossa Música Popular Brasileira.
Turismo
Aki e Kaoru também viajavam bastante, sempre que aparecia um desses feriados prolongados. Conheceram o Pantanal de Mato Grosso, o Rio de Janeiro, São Paulo e o interior do Paraná. Também visitaram parte de nossos familiares e amigos que moram em São Luís e de quem também já haviam se tornado amigas. Em São Paulo, as meninas ficaram encantadas com o Bairro da Liberdade. Não imaginavam que pudessem encontrar um pedacinho do Japão em solo brasileiro.
Tudo era motivo de festa; até os tropeções na língua que vez por outra as duas davam. Como por exemplo quando certa vez Aki disse que "dona fulana" havia "tintado" o cabelo; querendo com isso dizer que a tal pessoa tinha pintado o cabelo.
Separação
Findo o intercâmbio, no início de 1997 a dupla voltou para o Japão, para graduar-se. Meses depois, Kaoru retornou ao Brasil. Gostou tanto daqui que resolveu voltar. Trabalhou na UnB, como professora-auxiliar, e também no Clube do Nipo-Brasileiro, ensinando japonês para as crianças; filhas dos sócios.
Aqui, Kaoru conheceu e se apaixonou por Klei, um simpático sansei, com quem se casou. A cerimônia de casamento foi realizada no Japão, onde a mãe do noivo e toda a família da noiva residem. Retornaram em seguida ao Brasil mas depois de alguns anos fizeram o caminho de volta. Hoje, o casal mora e Nagoya. Kaoru trabalha atualmente no Banco do Brasil daquela cidade japonesa. Nós, sua família brasileira, estamos aqui na torcida para que logo venha por aí um "kodomo".
Casal Imperial
Ainda sobre a temporada em que morou no Brasil, em 1997, logo que graduou-se e retornou do Japão, tem um episódio que certamente marcou a vida de Kaoru. Quando o imperador Akihito e a imperatriz Michiko visitaram o país, naquele ano, ela trabalhava na Embaixada do Japão. Por esse motivo, acabou fazendo parte do cerimonial que recepcionou o casal imperial aqui em Brasília. Foi uma emoção e tanto. Tempos depois, Kaoru me contou da emoção que também sua avó sentiu ao saber que a neta conhecera de perto o imperador e a imperatriz do Japão e que até foto ao lado deles havia tirado para registrar o momento.
Aki, por sua vez, atualmente mora e trabalha em Osaka. Em 2001, ela voltou ao Brasil para nos visitar. Sempre que pode, por sinal, Aki viaja para conhecer outros países. Em 2006, juntou-se ao fã-clube de um conhecido cantor japonês (Kazufumi Miyazawa) e foi conhecer Cuba. Seu ritmo de trabalho, contudo, é bastante puxado. Eu gosto de brincar dizendo: "Aki, minha amiga, você virou 'nihonjin' novamente; está trabalhando muito, menina".
Saudade
Não perdemos o contato com Aki e Kaoru. Sempre nos falamos pela Internet. Sentimos saudade das japonesinhas; nossas amigas. Foi uma fase feliz aquela que vivemos. Tivemos então a oportunidade única de entrar em contato uma com a cultura da outra. Não restaram apenas daquela época as fotos - que um dia o tempo há de amarelar - mas sobretudo uma amizade recíproca e sincera. Claro, trocamos também alguns, CDs, cartas, cartões e outras tantas lembrancinhas. Meu Maneki Neko, por exemplo, que ganhei de presente, nunca saiu de minha estante. Banzai !!!
Cerejeira do Japão
Corsário
A Paz
Passarim
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil