Conte sua história › Beto Balduzzi › Minha história
Era 1º de janeiro de 1991. Estávamos em algum lugar nas proximidades de Tokyo, no auge do inverno e eu debaixo d’água.
Reveillon no Japão. Sozinho, fui dormir antes mesmo da meia-noite. Tínhamos marcado o primeiro treino de karate do ano novo para a manhã seguinte bem cedo.
Por volta da 01:00h bateram na porta do quarto de pensão em que dormia. Com um inglês desarticulado, o proprietário da empresa de embalagens onde trabalhava, me convidou a pegar a bicicleta e pedalar até um templo xintoísta próximo.
Fui.
Ele me fez depositar uma moeda, bater palmas e orar. Aqueles deuses, definitivamente não falavam português. Eu, há dois meses, morando em Yokohama não falava japonês. Orei em imagens, cinema mudo.
Voltamos para casa e dormi as horas que me restavam.
As 07:00h, já estava na Van de um dos faixas pretas em direção ao treino.
Corremos mata adentro, subimos uma longa escadaria carregando uns aos outros nas costas por diversas vezes, socamos, chutamos. Fazia frio: zero graus.
Não sabia nunca qual o próximo passo. Esperava os outros faixas pretas começarem e imitava. Igual criança. Entendia aqui e ali uma e outra palavras: haiaku, tsikareta, sugoi, mo i kai.
Paramos, recolhemos lenha para uma fogueira, as margens de uma queda d’água bastante alta, a água caía com força sobre uma rocha a uns 10 metros do solo e escorria novamente até nós.
Fogueira pronta, fiquei muito surpreso ao ver Saitoh Sensei retirar da mochila uma garrafa de whisky, Suntory 12 anos.
Então o primeiro de nós entrou na água, até a altura das coxas, e caminhou até uma pedra castigada pela água muito fria.
A ducha geladíssima foi cronometrada: 30 segundos, gritaram de fora. 1 minuto, e ele saiu quase sem cor, mas vitorioso.
Tomou seu gole de whisky, secou-se e aqueceu-se junto ao fogo.
O segundo, o terceiro, o quarto, o sétimo karateca. Todos cumpriram o mesmo ritual, o mesmo frio, a mesma pedra, os mesmos lábios roxos e o mesmo 1 minuto.
Minha vez. A bandeira do Brasil em meu kimono exigia o sacrifício. 1 minuto debaixo daquela água congelante. Como meu karate melhoraria com aquilo?
Não podia perguntar. Não sabia perguntar.
Minhas perguntas se resumiam a: Doko desu ka? e Ikura desu ka?
Coloquei o pé na água, endureci, caminhei com dificuldade até a pedra e me sentei.
A água caía como pancadas em minha cabeça e ombros. O frio intenso se transforma em dor.
Aguardei os gritos do cronometrista: 30 segundos, muito tempo, dor, não ouvia mais, muito tempo. Outro grito. Pronto. Posso sair, não fiz feio.
Não consegui me mexer. Estava imóvel, dormente, com muito esforço escorreguei pela pedra e dei poucos passos. Caí.
Me ergueram e fizeram festa. Fogueira, whisky, sangue correndo de novo e a constatação: 5 minutos.
Eu fiquei 5 minutos debaixo da queda d’água.
Não porque quisesse ou pudesse, mas porque não ouvi os gritos do cronometrista informando o tempo. Ouvi um aviso e depois outro. 1 minuto pensei, foram 5.
Azar dos 2 karatecas que foram depois de mim. Tiveram que ficar os mesmos 5 minutos do gaijim.
Meses mais tarde aprendi um pouco de japonês, poderia ter confessado que minha superação aquele dia fora um engano. Não confessei.
Porque quando aprendi melhor o idioma deles, esta e muitas outras superações já não tinham nada de engano.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil