Conte sua história › Helio Higa › Minha história
Ba pequena
Tributo a Kana Higa
Quando a geração sansei começou a se manifestar na família, deparamo-nos com um pequeno problema. Como diferenciar a primeira avó da bisavó. As duas eram obassan, ou simplesmente “Ba”. Então alguém resolveu o problema: a avó seria “Ba grande”, em razão do físico avantajado, e a bisavó seria “Ba pequena”, por ser miudinha. Para a geração nissei não havia problema, era simplesmente a Ba.
Da Ba guardo muitas lembranças. São lembranças marcadas por esta energia transcendente que se chama Amor; registrada de forma indelével na nossa memória, por mais remota que seja. Na mais distante recordação, lembro-me de estar no seu colo numa festa, provavelmente num casamento, daqueles típicos das décadas anteriores. Lembro-me de sua insistência em me fazer provar de tudo que havia naquela mesa farta, tão diferente da de sua infância e mocidade, povoada de privações. Lembro-me de sua satisfação e orgulho em me apresentar como o primeiro filho do seu caçula, Yoshinobu, às amigas e convidados que a cumprimentavam.
A necessidade de ganhar a vida, fazia com que meus pais e tios deixassem seus filhos na casa da Ba, que se transformou numa espécie de creche. A Ba e as primas mais velhas se responsabilizavam por fazer a comida e tentar cuidar daquela terrível patota de quase dez crianças... Evidentemente, muitas vezes nos excedíamos e lá vinha a Ba, de tempos em tempos, lançar alguns impropérios na língua okinawana batendo o pé no chão para, temporariamente, colocar ordem na casa. Uma das nossas brincadeiras preferidas era pegar um banco comprido, virá-lo e deslizar com toda a turma, por uma escada comprida que havia na garagem. Passávamos sabão, que as tias faziam, na superfície para deslizar mais facilmente. A brincadeira acabava quando algum dos mais novos caía durante a trajetória ou esquecesse um dedo embaixo. A choradeira alertava a Ba que, correndo socorria o “acidentado” e desfilava seu repertório habitual de xingamentos. Os mais velhos recebiam um merecido puxão de orelha. Eu sempre me livrei da fúria da Ba, ainda que pertencesse a esse grupo. Não sei por qual razão, a Ba nunca levantou a voz contra mim, ao contrário, embora participasse ativamente de todas as travessuras, ela sempre tinha uma atitude carinhosa para comigo. Nos momentos de tristeza sempre a procurava e a ajudava em alguma atividade que estivesse fazendo. Ela conversava comigo e me passava a mão pela cabeça. Várias vezes me levava ao seu quarto e olhando para o retrato de seus pais, contava histórias do passado. Relatos em utchinaguchi não entendido pela minha cabeça, mas compreendida pelo meu coração. Percebia muita emoção nos seus relatos. Às vezes com a barra do avental, enxugava uma lágrima. As duras contingências da vida, a luta diária pela sobrevivência, unem mais as pessoas e fortalecem os sentimentos de solidariedade. Posso imaginar quão doloroso foi o processo de separação que atingiu muitas famílias okinawanas, quando se aventuraram rumo a uma imigração para o desconhecido, ou quando um companheiro de aventura se despediu definitivamente. O desconhecido oferecia muitas barreiras, contudo oferecia também perspectivas que não existiam em Okinawa.
A imagem que tenho da Ba era de uma pessoa alegre, de bem com a vida e feliz por ter gerado um novo ramo da família em terras brasileiras. As dificuldades existiam, porém eram muito menores se comparada com as de sua terra natal. Só em duas ocasiões vi a Ba triste e abatida. Foi quando perdeu seu companheiro – o Dissan - e seu filho, o tio Shigueo. Mas como exemplo de fortaleza da mulher okinawana, se recobrou rapidamente. A vida celebrava a chegada de uma nova geração e esta exigia seus préstimos.
Era comum todos nos reunirmos na casa da Ba nas noites de sábado, quando meu pai com os irmãos e minha tia, com sua bela voz, tocavam shamisen e cantavam as músicas de Okinawa, enquanto nós assistíamos a televisão ou nos distraíamos com alguma brincadeira. A Ba ficava sentada no sofá, com os olhos brilhando de felicidade ao ver toda a família reunida.
Até seus últimos dias, antes que o peso da idade a imobilizasse na cama, ela demonstrava a extrema afeição que tinha pelos netos e depois pelos bisnetos. Sempre que ia a alguma festa, fazia questão de fazer um pratinho para levar para os netos, costume este herdado da sua distante aldeia, onde a penúria era tanta que as avós se abstinham de comer para levar sua porção para os netos que ficavam em casa. Embora a realidade aqui fosse outra, este gesto de amor permaneceu incrustrada no seu coração. Era a preocupação de que os seus jamais experimentassem o gosto amargo da fome, que a atormentara no passado. Muitas vezes a vimos vindo da feira, carregando duas sacolas cheias de sardinha. Ia e voltava a pé, percorrendo uma grande distância para economizar o dinheiro da passagem, que convertia em alimentos. Das sardinhas ela fazia uma conserva inigualável que todos apreciávamos.
Quando os netos conseguiram que recebesse uma aposentadoria, ela começou a fazer a festa dos bisnetos. No dia do recebimento ela se arrumava, ia até o banco, retirava o dinheiro, passava no mercado e trazia uma sacola cheia de doces. Era comovente ver sua felicidade em meio a algazarra dos bisnetos, enquanto distribuía os doces. Sua gentileza estendia-se até aos netos já adultos, aos quais também eram oferecidos doces. Quando o avanço da idade fez com que a razão começasse a falhar, às vezes, a víamos disputando algum doce com os bisnetos mais novos.
Antes de me mudar de São Paulo, passei na sua casa para me despedir. Ba estava acamada, doente e fraca, mas teve fôrças para se levantar, abrir uma gaveta do seu guarda-roupa e tirar um dinheiro que insistiu em passar às minhas mãos. Diante da recomendação para ir com cuidado, disse para usar o dinheiro para um lanche no caminho. Durante muito tempo guardei aquele dinheiro como uma relíquia da minha Ba, até que um dia resolvi fazer um lanche em sua homenagem.
Já bastante combalida, ainda tivemos a felicidade de comemorar seus 88 anos de vida. Conseguimos juntar todos os descendentes que, com os amigos da família, se reuniram num clube numa grande festa. A Ba ocupou a posição de honra, vestida com um vistoso quimono de Okinawa, encomendado especialmente para a festa, ladeada pelos filhos, noras e amigas de sua faixa etária. Ela era o centro das atrações e irradiava uma felicidade divina. Certamente todos os espíritos dos nossos ancestrais estavam presentes comungando conosco daqueles momentos inesquecíveis. Já a aguardavam no portal, mas postergaram um pouco o seu retorno, a fim de que pudéssemos lhe prestar uma justa e derradeira homenagem.
Foi a última vez que vi a Ba em vida. Depois da festa retornei e só voltei para participar de sua despedida. Com ela ia uma parte de mim. Num gesto de despedida, toquei suas mãos, aquelas mãos que tantas vezes me acariciaram e me conduziram pelas ruas. Estava vestida com o mesmo quimono cerimonial. Mas o que ficou sempre gravado na minha memória foi a sua imagem na festa dos 88 anos. Aquela figura ungida por uma energia sagrada que, certamente estará me aguardando, quando também cruzar o portal desta existência terrena.
Seu neto Helio
As opiniões emitidas nesta página são de responsabilidade do participante e não refletem necessariamente a opinião da Editora Abril
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil