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Tributo a Shinzo Oshiro
Meu avô era um homem forte e calado. A força ele foi perdendo com o passar dos anos. O silêncio era uma imposição da barreira linguística. Sempre foi um homem do campo que trabalhava a terra. Na cidade, suas habilidades não tinham função. Perdeu a companheira com quem teve sete filhos no Brasil: dois homens e cinco mulheres. Depois viu partir mais três, antes de também se despedir da vida. Lembro-me, ainda criança, várias vezes vê-lo com o olhar perdido, procurando algo no espaço vazio. Hoje posso imaginar o que passava pela mente e pelo coração do meu avô.
Saudades, imensa saudades dos que partiram e de sua terra natal, sua querida Nakijin, em Okinawa, onde deixou familiares, amigos e lembranças de sua infância e mocidade. Um calado e contido desespero diante da impossibilidade do retorno.
Tinha um canivete preso a um molho de chaves com o qual tudo fazia. Picava fumo, descascava laranja, apontava lápis. Um dia trouxe um pedaço de madeira embrulhado num saco e pôs-se a descascá-lo com o canivete. Perguntei: “Vovô o que vai fazer?”. Ele respondeu: “Vovô vai fazer shamisen”. Durante dias o via descascando aquele toco disforme, recolhendo as aparas com vassoura e pá. Foram semanas de trabalho paciente durante o dia todo. Aos poucos o toco foi tomando o formato de uma panela. Depois com uma lixa alisou suas paredes internas e externas. Cavou um buraco num dos lados. Depois começou a trabalhar num pedaço de pau mais comprido. Mais dias de trabalho paciente. Entre minhas brincadeiras, por vezes me detinha para observá-lo. Vi quando tentava encaixar aquele haste no buraco da “panela”, e como depois voltava a trabalhar a haste. Quando por fim conseguiu, vi que ele tinha trazido uma tinta preta, com a qual pintou seu trabalho. Um outro dia o vi desembrulhando um pacote de jornal onde havia o couro de uma cobra. Depois umas cordinhas com as quais ele esticava em cima do seu shamisen. Vi também, como com o mesmo canivete, trabalhava um pedaço de osso. Até que finalmente sua obra terminou. Vi-o dedilhar as primeiras notas. A curiosidade infantil me fez experimentar também, e me diverti dedilhando as cordas do shamisen, que vovô acompanhava com um sorriso.
Daí para frente, o shamisen passou a ser seu companheiro inseparável. Escutava sua voz acompanhar a melodia. Às vezes o observava e comentava brincando com meu irmão: “Olha, vovô está chorando...”. Para uma criança era estranho ver um adulto velho, mas ainda forte, vertendo lágrimas. Hoje entendo e reverencio cada lágrima derramada por vovô. Eram lágrimas de saudades e recordações de tempos idos. Letras de canções que lhe tocavam profundamente a alma. Traziam lembranças de lugares e pessoas queridas cristalizadas no arquivo de sua memória. E assim se passaram os anos. Todos seguimos o curso da nossa existência, estudando, trabalhando, fazendo projetos, enfim, nos deixando envolver pela roda da vida. Nem nos apercebemos que o vovô definhava e um dia partiu definitivamente. Vovô se foi e o shamisen se calou. A família respeitosamente, guardou-o em algum lugar, onde descansou por quase quatro décadas.
Em finais de 2004, minha filha, voltava de uma estada de três meses em Okinawa, contemplada com uma bolsa. Voltou trazendo e tocando com muita desenvoltura um shamisen.
Ao observá-la, minha mãe lembrou-se do shamisen do pai e foi buscá-lo. Entregou-o à neta que começou a dedilhá-lo. Ao ouvir as primeiras notas que soavam mais graves, todas as antigas reminiscências afloraram na minha mente. Pude sentir a presença de vovô e uma forte emoção apertou o meu peito. Naquele instante tive a certeza que aquela energia que permeia a existência dos uchinanchus não morrerá jamais, enquanto pudermos celebrá-la e vivificá-la, principalmente nos acordes de um shamisen. Entendi o significado de um shamisen na vida de um Okinawano. Entendi o porque vovô, que nunca tinha tocado um shamisen na sua vida pregressa, se empenhou em construir um, que se tornou sua tábua de salvação e elemento de ligação com sua amada terra natal. Quantas mágoas conseguiu desafogar com seu companheiro, quantas alegrias pode reviver. Nunca saberemos. Isolado em meio às nossas preocupações, vovô procedeu durantes seus últimos anos, a um diálogo silencioso, através do seu companheiro, com a essência espiritual de Okinawa, até resgatar em si a sua própria essência, e se preparar para ser convidado a retornar ao seio dos seus (nossos) antepassados.
Seu neto Helio
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil