Conte sua história › Ester Yamaguchi › Minha história
Mais uma madrugada de chuva. Insistente e melancólica sobre o telhado. Sons e sensações tão evocativas quanto qualquer lembrança da minha infância. Eram os anos 60. Distantes no tempo, mas tão presentes ainda no meu dia-a-dia.
O estridente despertador marcava os seus ponteiros: 3:40 da madrugada. Enquanto nos chamava, a nossa mãe acendia, procurando no tato, o esfumaçado lampião de querosene. E logo se dirigia à cozinha, nos deixando no escuro. Era necessário nos alimentar, antes que saíssemos. Sabia que o embaraço de nós meninas, impediria que no intervalo entre as aulas, - naquela distante escola da cidade, - tirássemos da bolsa o único lanche ao alcance da nossa possibilidade: a batata-doce cozida. Preferíamos comê-la em casa, antes de sair. Assim, evitaríamos os olhares curiosos, e quem sabe, chacotas de outros estudantes da cidade. Eles comeriam seus suculentos sanduíches de calabresa ou um cobiçado hamburger na cantina escolar. Durante o intervalo, preferíamos fingir falta de fome.
Ainda sonolentas, comíamos a batata em silêncio, sob a luz de lampião, acompanhada por uma xícara de chá morno. Morno, porque a nossa previdente mãe deixava o bule na noite anterior sobre o fogão à lenha, esperando que as poucas brasas restantes do jantar, mantivessem seu calor até a nossa saída. Para reacender o fogão, ela teria que se levantar ao menos meia hora antes.
Para os nossos pais, a formação escolar das filhas estava acima de qualquer objetivo de suas vidas. Chuva, temporal ou sono não justificavam qualquer artifício para que faltássemos às aulas. A pobreza era a última razão para que deixássemos de cumprir aquela odisséia diária, dos nossos 12 ou 13 anos de idade.
Às 4:30, a escuridão e a tortuosa estrada de terra nos esperavam por 5 quilômetros de caminhada. À pé, até o ponto de ônibus. Havia apenas um guarda-chuva, para dividir com a minha irmã. Não possuíamos uma lanterna, mas dispúnhamos de visão aguçada e intuitiva, que só os moradores rurais desenvolvem. Conhecíamos na escuridão, cada pedra, cada poça e cada depressão que compunham aquela estrada.
Quando éramos surpreendidas por algum estranho movimento no escuro, nos convencíamos de que fosse apenas o vento a pregar um susto com o espectro das árvores. Mas havia um trecho inevitável a superar. A famosa e fúnebre goiabeira à beira da estrada, que abrigava uma cruz, onde anos antes morrera um caboclo, em um acidente de caminhão. Nas madrugadas de estrelas, percebíamos de longe, o contorno da coroa de flores de plástico, que adornava sua cruz. Já sob a chuva, o uivo do vento e o escuro do seu tronco atiçavam o nosso fértil imaginário infantil. Os “fantasmas” nos obrigavam a inclinar o guarda-chuva para frente e a vedar a visão da estrada. Nos encorajávamos, uma à outra, de que apertar os passos olhando apenas o chão, nos faria chegar primeiro ao ponto de ônibus.
Nas bolsas, levávamos cuidadosamente os nossos sapatos, limpos e lúcidos, que completavam o uniforme escolar. Sapatos preciosos, adquiridos a preço de muitas noites de costuras da nossa mãe. Trocávamos apenas quando o ônibus das 5:30 se aproximava, colocando rapidamente os nossos chinelos enlameados numa sacola. Esta, escondíamos atrás dos arbustos. Nossos surrados chinelos nos aguardariam ali, até o nosso retorno da cidade. Com o ônibus das 19 horas.
Conhecíamos os dois motoristas que revezavam aquela linha, que operava em 6 horários ao dia. O mais bondoso e gentil era o Seu Bento, que nos lembrava o Papai Noel das ilustrações. Mas com ele no volante, a viagem de 37 kilometros exigia duas horas de sonolentos sacolejos e nos fazia comer muita poeira até a cidade de Mogi das Cruzes.
Durante o percurso, o ônibus parava nos pontos de maior acesso a outros bairros rurais. Entre os passageiros que subiam, quase todos os estudantes eram nikkeis. Era noto que se formassem pequenos grupos de famílias mais prósperas, propensos a fecharem entre sí. Mesmo nas conversas, alargavam-se as distâncias. Dentre os que possuíam aparelhos de TV e discutiam seus programas prediletos, com aqueles outros, calados. A quem faltava a eletricidade em casa.
Em idades que começavam a desabrochar as primeiras vaidades femininas, havia algo que nos embaraçava muito perante os estudantes mais abastados e seus sorrisos de chacotas. Era quando nossos pais pediam para que comprássemos um litro de querosene ou um quilo de arroz, ao retornar da cidade. Sentimentos ingênuos e insensatos que a complexidade emotiva de adolescentes não podia explicar. Mas era um fato que tentávamos dissimular as atenções destes estudantes, quando carregávamos a sacola com a modesta compra. O forte cheiro de querosene se propagava por todo o ônibus, e eles sabiam a quem apontar os dedos.
Às 19 hs, o ônibus nos deixava de volta ao ponto. O nosso era o penúltimo daquele longo percurso, antes do ponto final. Nossos pais se alternavam ao aguardar alí, no meio da escuridão, quando o trabalho na lavoura lhes permitia. Eles temiam os andantes e forasteiros, que de tempo em tempo, eram vistos de noite perambular por aquela região. Sabíamos de suas exaustivas jornadas de enxadas, pois haviam perdido até mesmo o pequeno trator, para prover a nossa educação. Esfomeadas, pegávamos o caminho de volta, os mesmos 5 quilômetros de escuridão, mas agora, em companhia deles.
Ao vê-los abdicar do guarda-chuva a nosso favor, e eles, com apenas um saco de estopa sobre a cabeça, sabíamos que aquele afeto e seus gestos de proteção, viriam um dia a ser compensados. Mas até então, não tínhamos consciência de como isso viria a acontecer.
Sucederam-se muitas madrugadas no vai-e-vem daquelas longas caminhadas. Mas assim como a chuva, o tempo também passara. Com a conclusão da escola ginasial, tocou a nós duas deixar a zona rural. Deveríamos nos unir às nossas irmãs maiores, já encaminhadas anos antes a São Paulo, onde eram aprendizes de seus ofícios.
Naquele final dos anos 60, eles sabiam que para as suas filhas, chegara o tempo de voar. Haviam fortalecido nossas asas e forjado nossos espíritos para alçar, sem temor, os primeiros vôos solitários. Prosseguiríamos nossos estudos na grande cidade. Não sem novos sacrifícios. Mas não haveria mais a chuva e nem a escuridão. Os estudos permitindo, haveria à frente, apenas luzes de esperança e um possível arco-íris no final daquela nova estrada.
Hoje, estruturadas profissionalmente, olhamos para trás e sabemos qual foi o maior legado que eles nos deixaram: a liberdade, obtida com os estudos. Com ela, soubemos voar os horizontes do Brasil e também os céus distantes, por terras desconhecidas. E compreendemos então, que as mais tristes privações, não são as materiais. Mas a privação de asas.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil