Conte sua história › Paulo Moriassu Hijo › Minha história
Nos meados da década de 60, ainda morava em Presidente Prudente, interior de São Paulo, numa rua de terra batida. Numa tarde, após ter feito as lições de casa, saí para brincar. Assim que alcancei o portão vi um vizinho, que chamávamos apenas de "Gordo", e sua mãe, Dona Neuza, da família Braga Mello, se dirigindo ao ponto de ônibus. Eles me cumprimentaram e me convidaram a ir ao centro. Disse que não podia, pois meus pais tinham ido para uma cidade vizinha vender laranjas, e eu não tinha dinheiro para a passagem. Ela disse que, como estava me convidando, a passagem seria por sua conta. Pedi, então, que me aguardasse um minuto, pois precisava me trocar. Entrei, coloquei uma camisa e um par de chinelos de dedos e os acompanhei.
No caminho a mãe do meu amigo disse que iria nos matricular no catecismo da Catedral. Explicou que iríamos estudar e aprender os preceitos da Igreja Católica para receber Cristo no coração. Confesso que, por mais didática que fosse a sua explicação - era uma respeitada professora do primário - não entendia nada do que dizia. Falou-me da Bíblia, de Jesus Cristo, das orações, das missas e da primeira comunhão. Imagine um caipira do sítio, descendente de okinawanos xintoístas e budistas, ouvindo sobre uma religião à qual a família não pertencia. Assim que chegamos na Igreja, fomos para um escritório localizado na parte de trás. Uma moça nos atendeu e, educadamente, nos entregou as fichas para serem preenchidas.
Depois da matrícula, a mãe do meu amigo nos levou para o interior da Igreja, onde acendeu uma vela e rezou. Era a segunda visita que fazia ao interior da Catedral de São Sebastião. A primeira foi quando fui batizado, aos 8 anos, mas não pude conhecê-la por inteiro. Daquela vez fiquei impressionado com o seu tamanho. À primeira vista me pareceu ser imensa, por dentro. Havia um altar grande nos fundos, que depois soube se chamar "Altar Mor", e pendurado, acima dele, estava um homem com a cara sofrida, com um rolo de espinhos na cabeça e pregado numa cruz enorme. Perguntei para a mãe do meu amigo quem era aquele homem. Ela me respondeu que era o filho de Deus.
Nas laterais havia outros pequenos altares, com vários santos. No teto, nas paredes laterais, podiam-se ver pinturas sacras. Havia velas enormes acesas por todo canto. No meio da fileira de bancos à direita de quem entrava, quase no meio da igreja, encontrava-se o púlpito. Logo na entrada via as pessoas passarem seus dedos em um recipiente de água e fazer o sinal da cruz. Tempos depois, eu passei a repetir o gesto, pois descobri que aquela água era benta. Pelo menos duas vezes por semana me benzia com aquela água, pois, além das aulas de catecismo, freqüentava missas aos domingos. No final do ano fiz a minha primeira comunhão e me senti um cristão de verdade.
Para me apresentar na missa da Primeira Comunhão, tive que fazer uma peregrinação nos dias que antecederam a mesma. Naquela época quase não via meus pais, pois saíam de madrugada e retornavam somente à noite. Passávamos por dificuldades financeiras e meus pais iam de caminhão lotado de frutas e legumes, como laranja, tomate, batatas e melancias, para vender em outras cidades.
O dia da Primeira Comunhão se aproximava e eu não tinha ainda a vela, o terço e nem a fita que se usava pendurada na manga, quase na altura do ombro direito. Para comprar a vela e o terço, meu irmão Morishi conseguiu o dinheiro emprestado de um de seus amigos, dono de um bar na avenida Manoel Goulart. Corri até a igreja e adquiri os dois objetos.
Faltava ainda a fita, que achava importante, e faltava o dinheiro para comprar uma. Queria uma de cetim, branco e brilhante, com uma estampa de cálice e de hóstia de cor dourada. Mas sem meus pais presentes, no dia anterior à primeira comunhão, saí à procura de alguém que pudesse me arranjar uma usada. Fui a dezenas de casas pela redondeza, mas não encontrei uma pessoa sequer que tivesse feito a primeira comunhão por aqueles tempos. Até que alguém me disse que um menino morador da rua Casemiro de Abreu, no ano anterior, havia feito a primeira comunhão e talvez ainda tivesse a fita.
Fui à casa indicada. Era uma família de negros humildes, simpáticos e atenciosos. Atenderam-me junto ao portão. Quando expus o meu problema, uma mocinha, comovida, prontamente entrou para buscar a fita que seu irmão usara, e que também já tinha sido usada em outros anos, de modo que ela se apresentava um tanto quanto amarelada pelo tempo. Antes mesmo que ela me estendesse a fita, agradeci várias vezes. Corri para casa, feliz da vida, para lavá-la e torná-la branca novamente.
Cheguei na minha casa de posse de uma fita surrada e amarelada. Corri para o tanque, na esperança de que ela voltasse a brilhar e ter a sua cor natural. Lavei e esfreguei-a várias vezes, mas foi em vão. O amarelo estava impregnado e já fazia parte do tecido. Por mais que lavasse não voltava à cor original.
No dia da Primeira Comunhão, um bonito domingo, peguei um alfinete e prendi a fita amarelada na manga da camisa. Vesti a camisa e saí ansioso para a Primeira Eucaristia. Parti de casa me sentindo importante, como sentem os que partem para uma primeira e importante missão.
Assim que cheguei, procurei o meu grupo. Fui colocado, pela professora, em uma fila, na praça ao lado da Catedral. Antes da entrada para a missa, mostrei a fita ao pai de um colega que o acompanhava e perguntei se a mesma estava feia, pois se tornara mais amarela perante as brancas dos meus colegas. Ele disse que Deus não vê a fita apenas, mas a pessoa, principalmente a fé e a intenção, e que as minhas eram muito válidas. Foi o que me consolou e me fez entrar orgulhosamente na igreja, sem companhia de um familiar e nem do meu amigo “Gordo”, pois havia desistido do catecismo. No dia seguinte, devolvi a fita para família simples à qual sempre fui grato.
Obs.: Leia as minhas crônicas no www.gostodeler.com.br
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil