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Toshio Icizuca

Piracicaba / SP - Brasil
88 anos, Engenheiro/Escritor

Luz no campo


Não tenho o hábito de ficar atento aos comerciais de televisão. Simplesmente me desligo no momento que entra o comercial. Pensando bem, não deveria agir dessa maneira, uma vez que propaganda também é trabalho de arte, cuja elaboração requer criatividade e comunicação. Ignorar o comercial é o mesmo que desvalorizar a profissão de publicitário, a carreira escolhida por um dos meus filhos.

Entretanto, inexplicavelmente, existem comerciais que conseguem chamar a minha atenção, talvez pela criatividade das mensagens, ou pela afinidade com fatos que me levam a relembrar o passado. É o caso de uma propaganda institucional sobre eletrificação rural, patrocinada por uma concessionária de distribuição de eletricidade.

A cena de alegria de uma família de trabalhadores do campo no dia em que a luz elétrica chegou, fez me lembrar do fato semelhante que se passou na década de quarenta em nossa casa.

Até então, não havia luz elétrica na gleba Coati, mais conhecida por Ikku pela comunidade de Tyuo-ku, formada por sitiantes de origem japonesa, imigrantes que cumpriram o contrato como colonos em fazendas de café no Estado de São Paulo.

A nossa casa do sítio era bem rústica, habitação típica da zona rural de Londrina na época do assentamento de imigrantes do país do sol nascente: a casa era de madeira, chão de terra batida na cozinha e no banheiro, pisos de tábua de peroba nas demais dependências, cobertura de tabuinha, sem forro e sem pintura. O sanitário era a famosa casinha construída longe da residência.

Sem luz elétrica, casas eram iluminadas com lamparina, ou lampião de gás, para aqueles que podiam gastar um pouco mais. As noites mal iluminadas pareciam ser longas e tristes. Entretanto, visitantes que vinham à noite da cidade achavam que o cenário era poético e aconchegante... Ferros de passar roupa eram aquecidos a carvão em brasa, discos fonográficos eram tocados em vitrola movido à corda de aço, água do poço era tirada com sarilho, e os aparelhos de rádio - poucas famílias possuíam – funcionavam à pilha usada em telefonia, cujo tamanho era de uma lata redonda de óleo de algodão.

Eu e meu irmão mais velho estávamos no primeiro ano do ginásio. Caminhávamos cerca de nove quilômetros – ida e volta – em estrada de terra batida, extremamente poeirenta no período de estiagem, e lamacenta e escorregadia em dias de chuva. Fazer lições de casa à noite à luz de lamparina – trabalhávamos meio período no campo ajudando meus pais - era quase uma odisséia. Com freqüência saíamos da mesa com os cabelos chamuscados ao terminarmos os estudos.

Um dia, os sitiantes se cotizaram e resolveram solicitar extensão de linha de força para as doze propriedades da comunidade que faziam divisas com o córrego do Coati, sítios mais próximos à cidade. Não me lembro do valor exato de cada cota, porém ainda me lembro que foi alto para as condições econômicas dos moradores.

No dia em que os trabalhos de instalação foram iniciados, a alegria tomou conta da comunidade. Parecia que todos estavam esperando um presente de Papai Noel, prestes a chegar. Eletricistas e peões eram vistos como super-homens, pois faziam coisas que os caipiras do sítio nunca haviam visto até então. A criançada acompanhava com interesse todos os detalhes da montagem, mostrando enorme curiosidade. O que mais nos chamou a atenção era os homens subirem no poste de madeira como macacos, com ganchos atados aos sapatos. Os meninos até tentavam ajudá-los, na ânsia de ver os trabalhos concluídos o mais rápido possível, mas na verdade acabavam atrapalhando.

Postes levantados, isoladores fixados, fios esticados, transformador e chaves instaladas, medidores colocados, a linha estava pronta para ser energizada. A esta altura, todas as casas já haviam providenciado a instalação elétrica interna, como fiação de distribuição, bicos de luz, tomadas e interruptores. Alguns aparelhos eletrodomésticos também aguardavam o momento de entrar em ação.

Fixado o dia da inauguração, ficou decidido que a chave geral seria acionada somente ao anoitecer, para que os moradores pudessem sentir a diferença entre a luz de lamparina e a luz elétrica.

Chegado o dia, o clima na comunidade era de festa, o povo estava ansioso para ver o sonho da luz elétrica ser concretizado. O fim das noites de semi-escuridão que os acompanhara durante quinze anos estava com horas contadas. Finalmente, os moradores dos sítios também receberiam a melhoria que até então era o privilégio dos moradores da cidade.

Na noite da inauguração, foi um tal de acender e apagar lâmpadas, ainda com as lamparinas acesas, só para observar a diferença de claridade entre as duas fontes de luz e, soltar gritos de exclamação: Oh...! Viva...! Que diferença!

A comemoração prolongou-se até o início da madrugada, fato jamais ocorrido nos tempos de lamparina.

Foi uma noite inesquecível para a comunidade japonesa de Ikku, a primeira do Tyuo-ku a conquistar a melhoria.

*Toshio Icizuca é engenheiro, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba.

Esta crônica faz parte do livro “Refrescando a Memória”, do autor, lançado em 2003, em Piracicaba.


Enviada em: 04/02/2008 | Última modificação: 04/02/2008
 
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Comentários

  1. Júlio Kobayashi @ 5 Fev, 2008 : 14:36
    Afora os profissionais que vivem da função, há os que registram fatos e histórias sem a pretensa investida literária ou jornalística, mas que despertam igualmente um grande interesse pelos seus propósitos. Há outros, os mais entusiastas, que fazem por um desejo de protagonismo e vaidade, confiantes na própria veia literária, e que acabam apenas num malabarismo de linguagens rebuscadas e redundantes. Mas há ainda outros, os que nos transportam diretamente à alma humana, através da sensibilidade natural, espontânea e despretenciosa. E com grande habilidade em traduzir emoções. E este último, é o caso dos seus textos e de mais um perfil, a quem já postei aquí, por ter-me tbém emocionado . Parabéns pelas crônicas. Júlio

  2. Luci Suzuki @ 18 Mai, 2008 : 07:47
    Sr. Icizuca, confesso que muitos textos aquí neste site, tais como os seus, me despertam um prazer quase infantil de desejar que o último parágrafo não se conclua, ou então, esperar que haja uma página sucessiva, com novos relatos de igual intensidade. A alegria e o alvoroço dos moradores rurais com a chegada da luz elétrica, descritos com uma pátina poética pelas mãos de um escritor no relato “Luz no Campo“, não poderia suscitar emoções diferentes. É uma fotografia que remexe na memória do meu pai, já falecido, e das nossas longas conversações, nas quais relembrava com uma incontida emoção, a chegada de grandes conquistas: a luz elétrica, a água na torneira e os primeiros aparelhos de comunicação trazidos para dentro de casa. Usando a própria hipérbole do meu pai, naquele contexto rural, o simples interruptor ao primeiro fogão a gás, lhe valeram uma liberdade tão imensa quanto o grande passo que a humanidade ganhara com a chegada à lua. Creio que imagens e fragmentos como estes, são como um grande puzzle, que não pode ignorar o menor elemento para compor, de fato, a História. O resto, é mera festança. Um abraço, Luci

  3. Luci Suzuki @ 29 Mai, 2008 : 15:03
    Sr. Icizuca, me permito amarrar algumas analogias ao raciocínio do seu último parágrafo, - no qual observa como certas projeções econômicas ou políticas conquistadas por uma nação possam fortemente influir na recuperação da identidade de seus indivíduos fora de sua terra de origem e sua consequente inclusão social. Onde vivo, assisto a olho nú, esta mesma inversão de tendência na relação entre a sociedade anfitriã – no caso, a italiana – e alguns grupos de estrangeiros que vivem no país. Até há alguns anos, a sociedade local se distinguia entre a italiana e os “Outros”, os desconhecidos. Estes, pertenciam àquela massa disforme e heterogênea de mão-de-obra barata, constituída sobretudo por estrangeiros do hemisfério sul, sem uma precisa feição ou distinção cultural, convenientemente agrupados sob a denominação genérica de “extracomunitários” – ou, não-pertencentes à União Européia. Mas nestes tempos que correm, a história tbém vira a página com grande velocidade, ditada pelos efeitos da globalização. Dentre os “extracomunitários” locais, um exemplo emblemático deste efeito é o de chineses. Sua comunidade formada ao longo do péríodo pós-Deng Xiaping, começa hoje a ganhar apelativos menos pejorativos e mais proeminentes, não apenas pelo seu espírito empreendedor dentro do território italiano, mas por efeito econômico e político que a China representa para a economia local. Obviamente isso tem gerado focos de xenofobia aquí e alí, e não apenas em relação aos chineses, mas isso é assunto para outros temas. O mesmo, creio, esteja ocorrendo tbém com as comunidades indianas, esparsas pelos continente, pelas mesmas razões. O fato é que hoje, os filhos de chineses nascidos aquí na Itália, começam a recuperar a própria identidade cultural e a usufruir dessa dualidade para servir de ponte entre a economia local e o próprio país de origem. (E convenhamos, sabemos que a economia européia depende muito mais do salto econômico chinês que o contrário). E por ironia, deste intercâmbio nasce tbém o reconhecimento cultural. Para finalizar, gostaria de relatar alguns flagrantes pouco agradáveis observados nos guichês de controle de imigração, durante desembarques, onde há 2 corredores distintos, entre os cidadãos da UE e os não-UE. Os japoneses, norte-americanos, canadenses e outras nacionalidades de países ricos, - que oficialmente pertencem ao mesmo “grupão” dos marroquinos, peruanos, brasileiros ou senegaleses, - passam quase imunes ao controle rigoroso de passaportes. Qdo a fila dos não-UE se alonga, há oficiais que bradam “Only japaneses, please! ”, para direcioná-los à fila dos europeus e aliviar o afogamento dos guichês. E o mesmo ocorre com os norte-americanos, claro. É triste constatar o qto a economia estabeleça as relações humanas, sobretudo as inter-raciais. Me perdoe pelo longo comentário. Abraços, Luci

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