Olá, faça o Login ou Cadastre-se

  Conte sua históriaToshio Icizuca › Minha história

Toshio Icizuca

Piracicaba / SP - Brasil
88 anos, Engenheiro/Escritor

Conversa no terreiro


A manhã estava fria no sítio do meu pai, o velho termômetro de bulbo úmido que ele ainda conserva pendurado na parede do corredor, marcava dez centígrados.

Estava em período de férias do meu emprego em São Paulo. Levantei-me cedo com o objetivo de respirar o ar puro do campo, coisa que não fazia há tempo.

Após um gole de café que minha preparou, saí para me aquecer ao sol, que apesar de fraco provocava uma sensação agradável ao corpo.

Caminhando lentamente sem destino observando a paisagem que fez parte de minha vida, há quarenta anos, lembrei-me da época que ali trabalhava para ajudar meus pais.O cenário não era o mesmo, mas pouca coisa havia mudado, a tulha de madeira para armazenar café em grãos era a mesma, assim como o terreiro para secagem do café verde. A pouca distância da atual casa de alvenaria, residência dos meus pais, estava a velha casa de madeira onde nasci, malconservada e abandonada ao tempo. Na mesma situação encontrava-se o antigo poço d’água, cujo sarilho não me traz boas lembranças, um acidente na infância me deixou uma marca para sempre no meu supercílio.

Ao ver o cafezal carregado a poucos metros de distância, pronto para a colheita, não pude conter a emoção. Meus olhos encheram-se de lágrimas, pois graças a rubiácea, terra fértil e trabalho incansável dos meus pais, fizeram com que eu pudesse prosseguir os estudos em São Paulo, após concluir ginasial em Londrina. A eles devo a minha formatura em engenharia.

Ao me aproximar do terreiro construído de tijolos e rejuntados com cimento, percebi que havia uma pessoa atrás de um dos montes de café cobertos com encerado. Imaginei que fosse um dos camaradas – trabalhadores temporários do campo contratados na época da safra. Enganei-me, o trabalhador era meu pai, meu querido velho, que apesar dos seus oitenta anos ainda fazia questão de acompanhar o trabalho dos colonos e camaradas, de sol a sol, muitas vezes sem descanso nos fins de semana.

Ele estava ali aguardando a chegada dos seus auxiliares. Enquanto esperava, antecipava as tarefas preliminares que precedia o esparramo dos montes de grãos sobre o terreiro.

Os dois ajudantes chegaram. Num instante desfizeram os dois montes e foram embora em direção ao cafezal, carregando as ferramentas de trabalho, moringa com água e marmita. Os serviços complementares, considerados leves, caberiam ao papai executá-los.

Com intuito de ajudá-lo, peguei um rodo e comecei a desfazer os montículos, relembrando o que fazia há quatro décadas. Notei que ele estava atento aos meus movimentos, como um chefe que observa o trabalho dos seus comandados. Com a fisionomia de quem não está satisfeito com o modo de execução, aproximou-se de mim e disse em tom paternal, que eu não estava fazendo o serviço corretamente, e me ensinou a maneira certa, pegando o rodo da minha mão. Essa atitude me fez lembrar que o papai não havia mudado em nada, era o mesmo que me ensinou muita coisa quando criança. Fazia repetir várias vezes o mesmo serviço, até achar que estava correto, pois era um perfeccionista, contudo era um homem de diálogo, sempre disposto a ouvir sugestões.

Terminada a tarefa, cansados que estávamos, sentamos na mureta de tijolo à beira do terreiro - onde papai havia feito uma fogueira - e iniciamos um bate-papo gostoso, reminiscências do passado.

Ao ouvir atentamente as histórias que o velho contava, lembrei de uma frase que o povo costuma dizer: ao chegar à velhice, as pessoas se tornam crianças.

Até então nunca havia parado para pensar a respeito dessa frase, espécie de pseudo-retrocesso mental atribuído às pessoas que atingem a idade senil. Entretanto, após horas de conversa, que na verdade fora um monólogo, papai relatando a trajetória da sua vida desde os tempos de infância e juventude no Japão, entendi o significado do dito popular. Ambos necessitam de muito calor humano, adoram ser paparicados, gostam de historinhas, as crianças, de ouvir, e os idosos, de contar. Mas, nem sempre estes encontram alguém disposto a ouvir-lhes.

Vendo suas mãos calejadas, rosto com sulcos profundos e pele queimada pelo sol, porém com saúde e disposição para o trabalho apesar da idade, confesso que a admiração que nutro por meus pais cresceu muito mais depois desse encontro no terreiro.

Hoje, quinze anos depois, ainda me lembro de uma frase que ele disse naquela ocasião: se Deus me der mais cinco anos de vida com essa disposição, não poderia me queixar da nada!

Para minha felicidade, Deus o mantém vivo, assim como a minha mãe, ele com noventa e cinco anos, e ela com noventa e dois. Evidentemente, não com a mesma disposição, mas com a mesma lucidez para relembrar o passado.

*Toshio Icizuca é engenheiro, autor do livro “Refrescando a Memória”, lançado em 2003, em Piracicaba. “Conversa no Terreiro” faz parte desse livro.

Nota: Os pais do autor faleceram quando o livro estava no prelo.


Enviada em: 04/02/2008 | Última modificação: 04/02/2008
 
Luz no campo »

 

Comentários

  1. Júlio Kobayashi @ 5 Fev, 2008 : 14:36
    Afora os profissionais que vivem da função, há os que registram fatos e histórias sem a pretensa investida literária ou jornalística, mas que despertam igualmente um grande interesse pelos seus propósitos. Há outros, os mais entusiastas, que fazem por um desejo de protagonismo e vaidade, confiantes na própria veia literária, e que acabam apenas num malabarismo de linguagens rebuscadas e redundantes. Mas há ainda outros, os que nos transportam diretamente à alma humana, através da sensibilidade natural, espontânea e despretenciosa. E com grande habilidade em traduzir emoções. E este último, é o caso dos seus textos e de mais um perfil, a quem já postei aquí, por ter-me tbém emocionado . Parabéns pelas crônicas. Júlio

  2. Luci Suzuki @ 18 Mai, 2008 : 07:47
    Sr. Icizuca, confesso que muitos textos aquí neste site, tais como os seus, me despertam um prazer quase infantil de desejar que o último parágrafo não se conclua, ou então, esperar que haja uma página sucessiva, com novos relatos de igual intensidade. A alegria e o alvoroço dos moradores rurais com a chegada da luz elétrica, descritos com uma pátina poética pelas mãos de um escritor no relato “Luz no Campo“, não poderia suscitar emoções diferentes. É uma fotografia que remexe na memória do meu pai, já falecido, e das nossas longas conversações, nas quais relembrava com uma incontida emoção, a chegada de grandes conquistas: a luz elétrica, a água na torneira e os primeiros aparelhos de comunicação trazidos para dentro de casa. Usando a própria hipérbole do meu pai, naquele contexto rural, o simples interruptor ao primeiro fogão a gás, lhe valeram uma liberdade tão imensa quanto o grande passo que a humanidade ganhara com a chegada à lua. Creio que imagens e fragmentos como estes, são como um grande puzzle, que não pode ignorar o menor elemento para compor, de fato, a História. O resto, é mera festança. Um abraço, Luci

  3. Luci Suzuki @ 29 Mai, 2008 : 15:03
    Sr. Icizuca, me permito amarrar algumas analogias ao raciocínio do seu último parágrafo, - no qual observa como certas projeções econômicas ou políticas conquistadas por uma nação possam fortemente influir na recuperação da identidade de seus indivíduos fora de sua terra de origem e sua consequente inclusão social. Onde vivo, assisto a olho nú, esta mesma inversão de tendência na relação entre a sociedade anfitriã – no caso, a italiana – e alguns grupos de estrangeiros que vivem no país. Até há alguns anos, a sociedade local se distinguia entre a italiana e os “Outros”, os desconhecidos. Estes, pertenciam àquela massa disforme e heterogênea de mão-de-obra barata, constituída sobretudo por estrangeiros do hemisfério sul, sem uma precisa feição ou distinção cultural, convenientemente agrupados sob a denominação genérica de “extracomunitários” – ou, não-pertencentes à União Européia. Mas nestes tempos que correm, a história tbém vira a página com grande velocidade, ditada pelos efeitos da globalização. Dentre os “extracomunitários” locais, um exemplo emblemático deste efeito é o de chineses. Sua comunidade formada ao longo do péríodo pós-Deng Xiaping, começa hoje a ganhar apelativos menos pejorativos e mais proeminentes, não apenas pelo seu espírito empreendedor dentro do território italiano, mas por efeito econômico e político que a China representa para a economia local. Obviamente isso tem gerado focos de xenofobia aquí e alí, e não apenas em relação aos chineses, mas isso é assunto para outros temas. O mesmo, creio, esteja ocorrendo tbém com as comunidades indianas, esparsas pelos continente, pelas mesmas razões. O fato é que hoje, os filhos de chineses nascidos aquí na Itália, começam a recuperar a própria identidade cultural e a usufruir dessa dualidade para servir de ponte entre a economia local e o próprio país de origem. (E convenhamos, sabemos que a economia européia depende muito mais do salto econômico chinês que o contrário). E por ironia, deste intercâmbio nasce tbém o reconhecimento cultural. Para finalizar, gostaria de relatar alguns flagrantes pouco agradáveis observados nos guichês de controle de imigração, durante desembarques, onde há 2 corredores distintos, entre os cidadãos da UE e os não-UE. Os japoneses, norte-americanos, canadenses e outras nacionalidades de países ricos, - que oficialmente pertencem ao mesmo “grupão” dos marroquinos, peruanos, brasileiros ou senegaleses, - passam quase imunes ao controle rigoroso de passaportes. Qdo a fila dos não-UE se alonga, há oficiais que bradam “Only japaneses, please! ”, para direcioná-los à fila dos europeus e aliviar o afogamento dos guichês. E o mesmo ocorre com os norte-americanos, claro. É triste constatar o qto a economia estabeleça as relações humanas, sobretudo as inter-raciais. Me perdoe pelo longo comentário. Abraços, Luci

Comente



Todo mundo tem uma história para contar. Cadastre-se e conte a sua. Crie a árvore genealógica da sua família.

Árvore genealógica

Nenhuma árvore.

Histórias

Vídeos

  • Nenhum vídeo.

| mais fotos » Galeria de fotos

Áudios

  • Nenhum áudio.
 

Conheça mais histórias

mais perfis » Com o mesmo sobrenome

mais perfis » Com a mesma Província de origem

 

 

As opiniões emitidas nesta página são de responsabilidade do participante e não refletem necessariamente a opinião da Editora Abril


 
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil

Sobre o Projeto | Cadastro | Fale Conosco | Divulgação |Termo de uso | Política de privacidade | Associação | Expediente Copyright © 2007/08/09 MHIJB - Todos os direitos reservados