Conte sua história › Toshio Icizuca › Minha história
A manhã estava fria no sítio do meu pai, o velho termômetro de bulbo úmido que ele ainda conserva pendurado na parede do corredor, marcava dez centígrados.
Estava em período de férias do meu emprego em São Paulo. Levantei-me cedo com o objetivo de respirar o ar puro do campo, coisa que não fazia há tempo.
Após um gole de café que minha preparou, saí para me aquecer ao sol, que apesar de fraco provocava uma sensação agradável ao corpo.
Caminhando lentamente sem destino observando a paisagem que fez parte de minha vida, há quarenta anos, lembrei-me da época que ali trabalhava para ajudar meus pais.O cenário não era o mesmo, mas pouca coisa havia mudado, a tulha de madeira para armazenar café em grãos era a mesma, assim como o terreiro para secagem do café verde. A pouca distância da atual casa de alvenaria, residência dos meus pais, estava a velha casa de madeira onde nasci, malconservada e abandonada ao tempo. Na mesma situação encontrava-se o antigo poço d’água, cujo sarilho não me traz boas lembranças, um acidente na infância me deixou uma marca para sempre no meu supercílio.
Ao ver o cafezal carregado a poucos metros de distância, pronto para a colheita, não pude conter a emoção. Meus olhos encheram-se de lágrimas, pois graças a rubiácea, terra fértil e trabalho incansável dos meus pais, fizeram com que eu pudesse prosseguir os estudos em São Paulo, após concluir ginasial em Londrina. A eles devo a minha formatura em engenharia.
Ao me aproximar do terreiro construído de tijolos e rejuntados com cimento, percebi que havia uma pessoa atrás de um dos montes de café cobertos com encerado. Imaginei que fosse um dos camaradas – trabalhadores temporários do campo contratados na época da safra. Enganei-me, o trabalhador era meu pai, meu querido velho, que apesar dos seus oitenta anos ainda fazia questão de acompanhar o trabalho dos colonos e camaradas, de sol a sol, muitas vezes sem descanso nos fins de semana.
Ele estava ali aguardando a chegada dos seus auxiliares. Enquanto esperava, antecipava as tarefas preliminares que precedia o esparramo dos montes de grãos sobre o terreiro.
Os dois ajudantes chegaram. Num instante desfizeram os dois montes e foram embora em direção ao cafezal, carregando as ferramentas de trabalho, moringa com água e marmita. Os serviços complementares, considerados leves, caberiam ao papai executá-los.
Com intuito de ajudá-lo, peguei um rodo e comecei a desfazer os montículos, relembrando o que fazia há quatro décadas. Notei que ele estava atento aos meus movimentos, como um chefe que observa o trabalho dos seus comandados. Com a fisionomia de quem não está satisfeito com o modo de execução, aproximou-se de mim e disse em tom paternal, que eu não estava fazendo o serviço corretamente, e me ensinou a maneira certa, pegando o rodo da minha mão. Essa atitude me fez lembrar que o papai não havia mudado em nada, era o mesmo que me ensinou muita coisa quando criança. Fazia repetir várias vezes o mesmo serviço, até achar que estava correto, pois era um perfeccionista, contudo era um homem de diálogo, sempre disposto a ouvir sugestões.
Terminada a tarefa, cansados que estávamos, sentamos na mureta de tijolo à beira do terreiro - onde papai havia feito uma fogueira - e iniciamos um bate-papo gostoso, reminiscências do passado.
Ao ouvir atentamente as histórias que o velho contava, lembrei de uma frase que o povo costuma dizer: ao chegar à velhice, as pessoas se tornam crianças.
Até então nunca havia parado para pensar a respeito dessa frase, espécie de pseudo-retrocesso mental atribuído às pessoas que atingem a idade senil. Entretanto, após horas de conversa, que na verdade fora um monólogo, papai relatando a trajetória da sua vida desde os tempos de infância e juventude no Japão, entendi o significado do dito popular. Ambos necessitam de muito calor humano, adoram ser paparicados, gostam de historinhas, as crianças, de ouvir, e os idosos, de contar. Mas, nem sempre estes encontram alguém disposto a ouvir-lhes.
Vendo suas mãos calejadas, rosto com sulcos profundos e pele queimada pelo sol, porém com saúde e disposição para o trabalho apesar da idade, confesso que a admiração que nutro por meus pais cresceu muito mais depois desse encontro no terreiro.
Hoje, quinze anos depois, ainda me lembro de uma frase que ele disse naquela ocasião: se Deus me der mais cinco anos de vida com essa disposição, não poderia me queixar da nada!
Para minha felicidade, Deus o mantém vivo, assim como a minha mãe, ele com noventa e cinco anos, e ela com noventa e dois. Evidentemente, não com a mesma disposição, mas com a mesma lucidez para relembrar o passado.
*Toshio Icizuca é engenheiro, autor do livro “Refrescando a Memória”, lançado em 2003, em Piracicaba. “Conversa no Terreiro” faz parte desse livro.
Nota: Os pais do autor faleceram quando o livro estava no prelo.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil