Conte sua história › Nilson Hissami Taninaga › Minha história
Os Taninaga tiveram a felicidade de contar com o talento da vovó Shigueno, terra Brasil, filhos maravilhosos, Comendador Miguel Botelho, Dr. Nilson e Toyoura, início de tudo. Essas foram, a meu ver, as principais razões de podermos descrever a trajetória dos Taninaga da forma como está sendo feita. Ocorre que houve uma sucessão causal, de uma cousa levando a outra, que pode ser descrita via seqüência de molduras e é o que vou procurar fazer nas linhas abaixo.
A moldura Shigueno foi inspirada na janela sob a qual dialogávamos. E desta vez irei abordar a vovó via moldura para revelar o seu lado dinâmico. Ela de Toyoura, inicio de tudo, passando a viver em terras brasis fez a trajetória dos Taninaga no Brasil.
Eu tenho utilizado a palavra Moldura, procurando trabalhar com o seu sentido, mas em nenhum momento a defini rigorosamente. E a razão disso é muito simples, é porque o centro da vovó era a fala e não a forma. De maneira que posterguei a apresentação da vovó naquilo que ela também dominava bem, o de falar ligando a sua própria fala com uma forma. É a esta forma que estamos dando o nome de Moldura, razão pelo qual disse em outras ocasiões:- ela normalmente falava de acordo com uma Moldura. Formas, molduras, estruturas estabelecidas ou que ela mesma estabelecera no período entre as décadas de 30 e 90 nas terras brasis.
Continuando com a comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil e dando prosseguimento ao trabalho de repasse, vamos agora nesse espaço Abril dar uma forma à Moldura. Para mim a mais perfeita forma de uma Moldura é o quadrado, tal qual a moldura de uma janela ou um quadro. E quando falamos em janela e quadro imediatamente nos vem, por exemplo, a imagem da janela do nosso quarto ou então do quadro Mona Lisa, mas com a Moldura as cousas não acontecem da mesma maneira, a sua imagem não vem de imediato uma vez que ela deve estar sendo efetiva no seu tempo, estar aglutinando vidas humanas como é o caso da vovó, vovô, filhos e netos.
Uma Moldura são palavras alocadas em uma figura geométrica e entendo que a figura que mais se enquadra na trajetória da vovó é o Quadrado.
A nossa tentação seria emoldurar todas as palavras possíveis do mundo, só que aí teríamos então um dicionário nas mãos e nenhum ganho a não ser uma impossibilidade. No caso a de falar com coerência e brilho. E iríamos ser obrigados jogar conversa fora, de maneira que o movimento deve ser exatamente o inverso, quanto menos melhor, a exemplo de Toyoura, início de tudo.
A mais simples moldura da vovó em Toyoura era ela, os seus familiares, Toyoura e teríamos então Toyoura, inicio de tudo. Esta era a base discursiva inicial da vovó. Sabemos que o tempo dela estava próximo da natureza, ou que vivia sob a égide do vai e vem das marés, das quatro estações do ano e numa economia periférica e estagnada. Volto a observar aqui que tanto os termos economia, periferia e estagnação tinham sentidos diferentes daquela que normalmente damos a ela, por se tratar de Toyoura, início de tudo, ou pelo fato da moldura alocar a vovó Shigueno.
Entendo que em Toyoura, início de tudo, vovó vivia tempos morosos, havia a falta de perspectivas de gerar novos centros, levando a realização do primeiro e conhecido deslocamento da vovó, surgindo a terra Brasil, 29.
Terra Brasil, 29 foi ela, vovô Hiroichi, Toyoura, início de tudo, e terra Brasil. E, de terra Brasil, 29, para a descoberta que existiam terras brasis um pulo:- o primeiro revés da Shigueno e o início da sua trajetória de altos e baixos, idas e vindas, deslocamentos e estruturações.
Deslocamento sim, lógica não uma vez que a vovó Shigueno nunca viveu sob a tirania de uma lógica. Uma lógica fria, uma racionalidade egocêntrica para justificar a si mesma.
Não, nunca.
Ela nunca viveu em função de si mesma.
Tanto que ela normalmente encarnava falas impessoais ou raramente recorria a nomes próprios. Impessoal, mas com uma trajetória uma vez que de impessoal ela passava a pessoal em seus deslocamentos. Enfim, nas raras ocasiões que vovó e vovô materializaram um centro, o fizeram com o propósito de promover, no seu devido tempo, a vida dos seus restaurando brilhos discursivos. Nisso os Taninaga foram maravilhosos, com o envolvimento sequencial e, às vezes, simultâneo de quatro gerações.
Da luz o nome, na fundamentação de deslocamentos, com a vovó protagonizando cinco deles.
Foi com o José, seu primogênito, que a vovó fez o seu mais óbvio deslocamento. O fez herdeiro antecipado de uma propriedade rural em Santa Fé do Sul, pratica comum entre os nikkeis da época. Foi um deslocamento natural, terreno ou assentado na terra. E chegamos então a uma situação imediatamente anterior à moldura Shigueno do álbum de fotos.
Teríamos então em Santa Fé, início de tudo, ela, o vovô, familiares, José e a propriedade de Santa Fé do Sul ou, por economia de palavras, simplesmente Santa Fé.
Na moldura Shigueno da foto, mais para janela do que moldura - e o fiz propositalmente desta forma -, pode-se observar um deslocamento que originou a moldura Shigueno. Vê-se na foto a planta da Casa, a primeira propriedade particular de fato da Shigueno e do Hiroichi, e na planta um Salão Comercial. No Salão Comercial vovô e vovó mantiveram um bar por um curto período. Posteriormente o Salão foi alugado para os Morimoto implantar uma quitanda. Mais posteriormente ainda os Morimoto se deslocaram nas proximidades, na mesma quadra e Rua 14, implantando uma mercearia em prédio próprio. Nessa altura dos acontecimentos a vovó já contava com os seus quatro filhos, filhas, netos e eu fazendo parte do seu cenário.
A moldura Shigueno era ela, o vovô e a Casa, familiares, José e Santa Fé.
Na ocasião o cenário que ela tinha à disposição era o ferreiro Nino, na quadra abaixo e na mesma rua o ferreiro Osada, nos fundos um dentista, na frente uma farmácia, a Casa Marques e não muito longe do local o Dr. Nilson. Foi nesse cenário que surgiu a quarta moldura Shigueno.
Teríamos em São Paulo, conhecimento, ela, o vovô e a Casa, José e Santa Fé, Miguel e São Paulo. O deslocamento é, para mim, óbvio e centrado no conhecimento. No vácuo do tio Miguel seguiram dois outros tios e logo em seguida eu e, posteriormente, uma parcela considerável de familiares e primos. Atualmente uma parcela dos yonsei - familiares e sobrinhos - estão sendo encaminhados para seguirem esta mesma linha, inaugurado pelo São Paulo, conhecimento.
Antes de prosseguirmos no Espaço, tempo, luz façamos abaixo uma pequena síntese:-
0 - Toyoura, início de tudo em Toyoura. A herança, o vigilante silencioso.
1 - Terra Brasil, 29 ou a mais fundamental decisão. O pecado original da vovó.
2 - Santa Fé, início de tudo em Santa Fé do Sul. Ponto de equilíbrio, oriente e ocidente.
3 - Moldura Shigueno em Santa Fé, década de 50. Uma inversão, oriente no ocidente.
4 - São Paulo, conhecimento, Santa Fé do Sul, Ivinhema, São Paulo, década de 60 e 70. Transição, do concreto para o abstrato.
5 - Campinas, início de tudo, década de 90 e finalizando em 2002. Iniciação, equilíbrio das águas.
Farei abaixo breves comentários ilustrativos para finalizar este trabalho.
No final da década de 80 a colônia estava passando por grandes transformações. Uma parcela de nikkeis estava retornando ao meio rural, outra interligando Cumbica e Narita.Tudo que havíamos feito até então não era facilmente criticável, tampouco julgável, e a Shigueno sabia disso.
Sentávamos freqüentemente na área de serviço para falar sobre essas cousas, ou na frente do tanque de lavar roupa e de um pé de goiaba. Do nosso lado direito canteiros mantinham hortaliças crescendo saudáveis e, do lado esquerdo, o Gil - um magnífico pé de laranja mexirica - esbanjava saúde. Eu e o Gil crescemos abstratamente juntos.
A vovó Shigueno era abstrata principalmente porque colocava toda a sua força na fala. Eu limitava ouvir, ouvir e ouvir, era todo ouvido. Assim, e para mim, era como se o centro dela fosse a fala e o meu centro em relação a ela o meu aparelho auditivo.
A vovó era abstração pura quando cuidava do jardim, da horta ou quando sentava na frente da penteadeira. Ocorre que essas cousas não teriam nenhuma utilidade em um estado de brilho, não poderiam ser usadas para se falar com brilho, mas era justamente nesses momentos que ela era verbo. Era ela mesma e a elaboração de discursos com a adição do brilho ao verbo, com ela buscando elementos no mundo das luzes, que fizesse sentido e fosse útil aos seus.
Mundo das luzes ou o mundo que nos é revelado pela luz do Sol.
Vendo, simplesmente vendo, observando o que se passa no entorno.
Ver, nomear, definir e restaurar o discurso. Criar um mundo no qual se quer viver e as terras brasis deram à vovó liberdade de escolha, à altura daquilo que ela poderia realizar.
E uma das suas últimas realizações foi me colocar dentro da sua moldura.
De maneira que quando a vovó estava em Toyoura existia a Toyoura, início de tudo. Uma vez no Brasil a vovó anexou a terra Brasil, em um novo início de tudo. Numa espécie de grau zero discursivo onde a terra Brasil era a palavra chave. Palavra que a cada nova moldura voltava ao seu grau zero discursivo.
O seu quinto zeramento, Campinas, início de tudo, tem tudo a ver com o que havíamos feito até então. Anexando o Japão iniciamos uma nova trajetória.
Quase toda a minha convivência com a vovó Shigueno eu fora um ouvinte.
O meu pai é o primogênito dos Taninaga e eu sou o primogênito da família, de maneira que sou o primogênito do primogênito. Sempre levei isso em conta.
A vovó adorava falar, não falava por falar e amava falar com brilho. E eu nunca a contestei simplesmente porque absolvi a sua maneira de ser. E como primogênito do primogênito sempre intui que ela era o centro e eu amava essa situação. Numa dinâmica que estava funcionando bem jamais, sendo eu, faria uma intervenção indevida, fora do contexto. Era ela quem estava numa condução intermediada pela fala e deveria ser respeitada e amada por isso. Com ela vivi a minha plenitude.
Saudações fraternas, vovó.
Nós, os seus filhos, netos e bisnetos brasileiros, estamos grato por tudo.
Grato por ter existido.
E, mais do que nunca, na superação deste mundo de causas entendemos que você sempre fora você, autentica. Sigo as pegadas dos seus passos vovó.
Acertando, freqüentemente errando, mas caminhando sempre. Peregrinando também, com o coração puro e aberto. Do lugar onde estás corrija-me no que for necessário, está bem? Mais do que nunca esses dias são seus.
Da nossa venerável, querida e amada vovó.
E como vovó do Centenário a única, para sempre,
Shigueno.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil