Conte sua história › Nilson Hissami Taninaga › Minha história
Nasci em Santa Fé do Sul, uma cidade situada a noroeste do Estado de São Paulo. Um local inesquecível, talvez por ter acolhido a minha infância e, com certeza, pelo fato dela conter recordações da vovó. Ocorre que as lembranças mais profundas e que mais gosto são deste período da minha vida. Profundas pelo fato de, nos meus oito anos com os meus pais e sete com os meus avós, ter havido tempo de aprender muitas coisas.
No meu primário e ginasial ora me via residindo com os meus pais, ora com meus avós. E passei a andar pelas ruas da capital paulista antes de completar os meus dezesseis anos. Na época e nas décadas seguintes isso não significou muita coisa para mim. Só depois de todo estes anos vividos, percebo que o mundo também me deu um outro tanto de conhecimentos.
E o que estou procurando fazer aqui é repassar as minhas experiências acumuladas de berço e de mundo. De forma que este meu retorno ao passado não é um simples retorno, mas um ato de caminhar por entre paisagens, de recuperar belas e inesquecíveis recordações, um ato de peregrinar por montanhas e vales das nossas vidas. Fragmentos dos meus pais, avós, de mim e de outros estão sendo alinhados simultaneamente. Fatos do cotidiano, aparentemente corriqueiros, estão sendo contados juntamente com valores como descendência, origens e raízes. Fatos estão sendo registrados.
Procuro resgatar valores humanos de base, iniciáticos, de berço a exemplo da vovó quando conseguia obter unanimidade entre os seus:-
Ela adorava falar.
Procurava não jogar conversa fora.
Ela amava falar com brilho.
Ela adorava falar mesmo que o público fosse formado somente pelos seus e, quando muito, por aqueles que caminhavam na Rua 14 ou pelas demais de Santa Fé. Um público restrito em quantidade, mas fiel por ser de berço.
A vovó amava falar com brilho, enquanto o brilho fosse o resultado de um caminhar. Não um caminhar qualquer, mas um de acordo com a moldura que estava usando. Ocorre que em uma moldura histórias, existências e vidas são desenvolvidas. E no caso da vovó não eram histórias à parte, daquelas que se lê em livros escolares, mas histórias nas quais elas e os seus protagonizavam ao longo do tempo.
De maneira que eu não estou falando de um caminhar pelas ruas de Santa Fé, poderia até ser, mas não era esse o caso. Existia o envolvimento dos meus pais com o meio rural, portanto um caminhar rural. Os meus tios se ligaram ao meio urbano, de maneira que a maior parte dos Taninaga fizeram uma trajetória urbana ou um caminhar urbano. Vidas estavam se desenvolvendo tanto no meio rural como urbano.
Existia, ou ainda existe, todo um mundo de luzes protagonizado pelos Taninaga. Uma das habilidades da vovó era traduzir estas luzes em discurso e ela amava as luzes que os seus filhos emitiam.
A vovó via tudo que estava à sua volta e não se preocupava mais do que o necessário com as suas relações com terceiros.
Não se importava se existia alguém falando ou não dela. O que lhe importava era se manter fixo nos seus. De maneira que ela caminhava verificando se todos estavam indo bem.
Existia algo que a incomodava bastante, era não conseguir dar um sentido preciso às cousas. Ela, no seu discurso, não criava distancia alguma entre as cousas e os nomes. E quando digo nomes não estou falando necessariamente de nomes de pessoas, mas também dos nomes das coisas, objetos e os nomes em si mesmo como pura abstração.
Taninaga é exemplo de um nome próprio - no caso o meu sobrenome - que refere, para quem me conhece, à minha pessoa. Os desconhecidos que estiverem lendo estas linhas passarão por ele como uma simples palavra ou abstração pura. E sabemos que somente depois de exaustivas comunicações comigo é que o Taninaga - estou referindo ao nome - iria ganhar o seu sentido próprio.
Apesar da vovó não raciocinar da maneira como estou fazendo agora, ela levava todas essas cousas em consideração. Raciocinava de uma maneira mais simples, pois viveu numa época bem mais simples do que a que estamos vivendo.
Como a vovó adorava falar, e falava claramente, ela sem dúvida nenhuma ficava trabalhando com os sentidos das palavras:- nos seus momentos de reflexão, leitura ou mesmo quando estava cuidando da horta e do jardim. De maneira que quando conversávamos no sofá cama azul ela falava comigo sem hesitar, era realmente boa nisso. E não parava por aí porque foi justamente com a fala que a vovó encaminhou os Taninaga em terras brasis, sem hesitar.
Falando de uma outra maneira, um pouco mais simples e direta. O tio Miguel é Miguel devido o comendador Miguel Botelho, dono de terra da época. E eu sou Nilson devido o Dr. Nilson de Santa Fé. Ambos cruzaram com a vovó e os meus familiares da época, de maneira que o fazendeiro e o doutor foram absorvidos, a ponto das suas imagens e nomes associados contribuírem para a criação de molduras.
E, como já o disse antes, a partir das molduras a elaboração de discursos.
A vovó conseguia não jogar conversa fora porque, em parte, conseguiu no seu devido tempo ter o comendador e o doutor como referencias. E parte do domínio da difícil arte de falar simples e clara vinha daí, dessas referencias.
De maneira que a partir do comendador Miguel houve um deslocamento dos Taninaga na direção da natureza, e do Dr. Nilson um outro deslocamento na direção dos homens. Diria então que a vovó viveu por um bom tempo sob a égide de forças provindas tanto do mundo terreno - rural - como do humano - urbano - e soube manter o equilíbrio dessas duas forças, mantendo a unidade familiar.
A seqüência de várias molduras Shigueno gerou a multiplicidade. Cada moldura ligado a um filho que, uma vez atingido a sua maioridade, lhe renovava a sua terra Brasil:- com um novo grau zero discursivo. Enfim, o que era totalmente abstrato - a terra Brasil de 29 - passou com o decorrer do tempo, e para a Shigueno, ter sentidos precisos e concretos. E tudo se passou como se a Shigueno tivesse, no decorrer da sua trajetória, vivido várias vidas numa só. Cada vida relacionada a uma respectiva moldura e filho.
Houve quatro ¨terra Brasil, grau zero discursivo¨ criados entre os anos 29 e 73. Cada terra Brasil associada a um filho, sendo dois deles o já citado José, meu pai, e o tio Miguel. Para a vovó eu faria parte de uma quinta moldura, um oceano ainda a explorar.
De maneira que a vovó Shigueno fora ela, o tempo todo única, autentica e desde o início até o fim da sua trajetória no Brasil. Constatação esta já dita de outra forma:- pela admiração que nutro por ela não ter sido atingida pelas eras do rádio, cinema, televisão e pela revolução tecnológica digital. No fundo as únicas e significativas eras foram aquelas que ela e os seus protagonizaram.
Vovó, tivemos a felicidade de contar com o seu talento, a terra Brasil, seus filhos maravilhosos e a Toyoura, início de tudo, que nunca a abandonou um instante sequer.
Fora disso, ilusões.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil