Conte sua história › Nilson Hissami Taninaga › Minha história
Toyoura fora para a Shigueno, o início de tudo. Ela não estava em condições de perceber as forças que iriam transformar o cenário, de um pequeno vilarejo para um núcleo spa. Os tempos no início de tudo eram pré Kawatana Onsen.
Os espaços estavam definidos.
Ocorre que a realidade da Shigueno era, de um lado, dominado pelo Mar do Japão - mar, marinheiros, barcos, pesqueiros, frutos do mar etc - e do outro - fora do perímetro urbano ou no espaço rural - dominada pelos então senhores da Terra. Dominação em uma economia estagnada e periférica.
O centro estava em Tokyo.
Não é exatamente correto falar em espaços rural e urbano. E o termo economia possui a sua historicidade, é carregado de um sentido que, no caso, não lhe seria próprio. Imaginar tais espaços, e as suas respectivas economias, seria imaginar uma falsa Toyoura, ou uma visão distorcida do início de tudo. Está certo que a Revolução Meiji havia levado - um dos protagonistas fora Ryoma Sakamoto - a uma mudança de realidade e a visão de mundo nipônica estava mais próxima do ocidente, mas nem tanto. Assim, o brilho da vovó não residia num discurso urbano em contraposição a um rural ou vice-versa, tampouco num discurso deka.
Façamos aqui um pequeno parêntese.
Sejam as referências, os centros, acontecimentos, fatos, eventos, processos, atividades, movimentos, sinais etc possíveis componentes de uma moldura. Na verdade tudo deve ser considerado como possíveis componentes de algo comparável à janela da sala da vovó. Da janela de vidro, que permanecia sempre fechada, existia o cenário externo. No caso o trecho de uma rua e de um terreno desocupado e, em segundo plano, parte da casa dos Tamashiro. Para mim era um cenário estável, uma vez que sempre via as mesmas cousas em todas as ocasiões que estive conversando com a vovó, sentados no sofá azul tendo a janela ao nosso lado. Apesar de estar em um outro plano, o que estou fazendo agora é equivalente.
Continuemos, imagine então uma moldura, ou um quadrado como nos quadros tradicionais, construída com elementos do cotidiano. E não faça restrições ou limites das cousas possíveis na sua composição. Agora é que vem a parte mais interessante, desenhe e pinte então o quadro a partir da moldura.
Eu posso estar criando uma dificuldade a mais para explicar o que a vovó fazia. Tomei os termos moldura e quadro inspirado, como disse, na janela da sala da Shigueno e o cenário que ela podia ver a partir dela. Abusando, só para assentar mais a idéia, poderia montar a equação moldura igual janela e quadro igual a cenário. Pode ser uma dificuldade a mais, mas existe um ganho nisso.
O fato é:
A vovó não jogava conversa fora. E ela não jogava conversa fora de acordo com a moldura que estava utilizando. O ganho reside em apresentar a vovó como ela realmente era.
Um dos pontos na vovó que considero importante é que ela colocava a fala como centro. Vovó fazia isso. A fala, o verbo, o discurso, as palavras ou o nome que se queira dar a isso era o centro. Só que as cousas não param por aí uma vez que isso é comum. Normalmente falamos, falamos e falamos sem perceber que estamos falando em vão. Isso é comum, o incomum é falar na medida exata e aí é que a moldura tem a sua utilidade.
Um olhar a partir da janela dava sempre para a casa dos Tamashiro. Isso nunca mudou para mim. À parte mudança domiciliar não havia razão alguma para mudanças. Anexe a casa dos Tamashiro numa moldura e junte à ela fatos relacionados aos Tamashiro, a partir desses componentes é então possível pintar um quadro, ou uma seqüência de quadros:- movimento.
Toyoura, o início de tudo apresentado acima é uma moldura. Coisa simples, tem-se a natureza - ou o Mar e as Terras - e os homens. Fragmentando mais ainda falei dos espaços urbano e rural e de ambas economias. Citei Tókyo como o centro e Toyoura como sendo periferia.
Coisas simples, mas com uma pequena dificuldade uma vez que, e logo em seguida, afirmei que o sentido que os termos urbano, rural e economia possuem não é exatamente igual àqueles que a Shigueno daria para eles. Uma outra dificuldade que não comentei no início são as palavras centro e periferia. É a mesma coisa, são palavras que não possuem exatamente o mesmo sentido para a Shigueno. A trajetória dela foi certamente condicionada por essas cousas.
Os elementos nomeáveis como adequados, próprios, centrais, que fazem parte, que dão sentido e que nos tocam estão normalmente à nossa disposição:- circulando, soltos, existem no mundo e bastaria então colocá-los na nossa moldura. Bastaria nomear a exemplo da vovó cujos elementos nomeáveis do início de tudo era o mar, os barcos, as terras e que a levava a um tempo cíclico:- na freqüência das vazantes e cheias das marés e no compasso das quatro estações da natureza. Ela certamente deve ter levado tudo isso em consideração quando deparou com a terra Brasil, com ela percebeu que poderia resolver o que a incomodava na época.
Toyoura era um espaço definido para a vovó, por ser satélite de Tókyo. Lá não existia luz no final do túnel, e tenho a impressão que não existia túnel também. A terra Brasil foi então incorporada nessas condições, resgatando o brilho da sua fala. Uma vez em terras brasis passou então a vivenciar outras realidades. Ela passou a fazer uma trajetória, de maneira que creio ser possível falar que a Shigueno da década de 60 já era outra. Mesmo porque a moldura inicial havia sido concretizada deixando a sua Toyoura para trás, ela vivia um novo tempo. Nem em sonhos fazia sentido pensar em um retorno ao início de tudo:- era proprietária de uma residência e o seu filho José proprietário de terras.
O fato novo é que os demais filhos estavam vivendo uma outra dinâmica, fora do compasso das estações na natureza.
A moldura Shigueno foi elaborada para mostrar isso.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil