Conte sua história › Nilson Hissami Taninaga › Minha história
Olho admirado para a rua que vai dar na casa da minha avó Shigueno. Ela está pavimentada com um asfalto preto que cintila sob os raios do sol. Tem um traçado perfeito, uma calçada bem cuidada, as guias alinhadas caprichosamente e as bocas de lobo livres de lixo. A rua está refletindo o sol matutino, vê-se no seu calçamento desenhos caprichosos feitos com pedra mármore e basalto.
Convivi muito pouco com os meus familiares. E, dentre eles, quem mais me influenciou foi a Shigueno. A força da modernidade não a afetou. É mais japonesa do que os seus familiares da cidade de Toyoura, no Japão. Ocorre que, mesmo depois de ter feito toda uma trajetória no Brasil, continua reproduzindo muitas tradições do sol nascente. Isso não é incomum dentro da colônia. O incomum nela é não ter sido atingida pelas eras do radio, do cinema e pela revolução tecnológica digital. Ela continua cuidando da casa, da horta e do jardim da mesma maneira que fazia décadas passadas. A sua maneira de pensar, comportar e agir continua sendo original ou do seu berço nipônico.
Esses dois trechos acima foram destacados da ¨Palavras Que Falam¨ - uma Antologia de Poesias, Contos e Crônicas da editora Scortecci. Como foi dito, convivi pouco com os meus familiares: sete anos com a vovó. Sai de casa com quinze e retornando periodicamente, ou duas vezes anual e que coincidiam com as férias escolares. Acontece que sai para estudar e a cidade mais indicada era a capital paulista.
Eu, na verdade, fui levado pelo vácuo da orientação familiar. A meta era a busca do conhecimento, busca essa iniciada pelo meu tio Hitochi. Levado maneira de dizer porque até hoje mantenho essa orientação. E vácuo em termos uma vez que essa busca esteve sob a guarda do tio Hitochi. Nada ocorreu por acaso, os meus avós, os meus pais o Hitochi e familiares desempenharam papéis importantes na manutenção dessa busca.
Conseqüentemente três gerações seguidas mantiveram o conhecimento como foco. Pode parecer exagero, mas a Shigueno foi uma das razões disso ter ocorrido. Para mim a fala era a sua característica mais marcante.
Ela gostava de falar e não falava por falar. Não era uma fala comum, ela não jogava conversa fora. Não é que ela era séria, quer dizer, não era totalmente séria, pois se descontraia também. Nos dias alegres sentava na penteadeira e cantarolava. Enquanto pintava os fios brancos cantava canções da sua terra natal. Diferente do vovô, que passava a maior parte do seu tempo parado, ela era bastante aplicada nas lides do jardim, da horta, da casa e arredores. Mudava o tom da sua voz quando falava do jardim e o mesmo acontecia com a horta. Mesmo sendo impecável no que fazia nunca se valorizou por isso.
Eu sempre olhei admirado para o seu jardim. O chão aparentava de terra batida, socada, mas era efeito do vai e vem cuidando das plantas. Nos canteiros da horta não havia ervas daninhas, ela os erradicava sistematicamente. Eu sempre admirei esse lado dela, ou o da dedicação, um comportamento totalmente oposto ao do vovô Hiroiti. Apesar dessa dedicação para ela horta e jardim não levavam a lugar algum. Tudo não passava de lazer, passatempo e consumo.
Jardim não lhe era útil para falar com brilho.
Ocorre que ela procurava falar com brilho. Fui percebendo isso aos poucos, mas a consciência veio quando o meu pai José comentou:
¨Preste sempre atenção no que a vovó fala.¨
¨Sempre faço isso, porquê?¨
¨Ela nunca fala em vão.¨
¨É verdade, já tinha percebido isso.¨
Normalmente conversávamos na sala, sentados no sofá cama azul. O sofá e a TV eram dois dos únicos luxos que a vovó mantinha na sala. À nossa esquerda a porta de entrada da sala, à direita uma porta que vai dar na sala de refeições. Sobre nós uma janela dupla que servia mais como moldura de um quadro, ocorre que a de vidro permanecia sempre fechada e mantinha a de madeira aberta. De forma que a janela servia mais como moldura da paisagem urbana externa. Dentro da moldura, e em primeiro plano, o trecho de uma rua asfaltada, da sua guia e calçada. Em segundo plano a casa dos Tamashiro, cujo patriarca é um nikkei issei de Okinawa.
Por um bom tempo a vovó viu a realidade à sua volta desta forma, observava o mundo através de uma moldura. Por um tempo relativamente longo, praticamente no espaço de três gerações, esta postura foi suficiente. A moldura era a aquisição de uma residência, a troca do carro, a reforma da casa, a pavimentação da rua, viagens ao exterior, promoções etc. O conhecimento do que estava ocorrendo a Shigueno obtinha através desta moldura, a partir daí ela, imaginando o que estava acontecendo, pintava o quadro, tirava as suas conclusões e se posicionava.
A moldura original, através da qual a vovó obtinha conhecimento, era rural. O centro inicial - constituído pelo casal issei, ou vovô e vovó - perdurou não muito mais do que duas décadas. Ocorre que o casal imigrara em 29 e na década de 50 o centro de gravidade do clã já havia migrado para os meus pais: herdando a primeira propriedade do clã. Um deslocamento do centro por antecipação, ocorrendo antes mesmo de se findar o ciclo da primeira geração.
¨Vovô aposentou cedo...¨ - comentou o José uma ocasião. De fato, parte da minha convivência com os meus avós ocorreu na década de sessenta e, na época, o casal já residia na cidade de Santa Fé do Sul. O que os mantinha ativo era uma horta, cultivada nos fundos da casa. Vovô imigrou com vinte e dois anos, somando as duas décadas seguintes, de 30 e 40, chegaríamos a uma aposentadoria obtida com 42 ou, no máximo, 50 anos.
A partir da década de 60 a vovó passou a ver o mundo através de uma segunda moldura. Foi quando o tio Hitochi partiu em busca do conhecimento na capital paulista. E o espaço até então centralizado em Santa Fé passou a conviver com o espaço em São Paulo. A partir do Hitochi os demais fizeram uma trajetória similar, com cada um fazendo as suas próprias vidas na capital paulista. A vovó acompanhou de perto todo processo. Com a criação de outros centros outras molduras foram criadas: uma multiplicidade de fontes de conhecimento do mundo.
Do conhecimento ocorria a fala, e nisso a Shigueno era brilhante.
A vovó não falava por falar.
As opiniões emitidas nesta página são de responsabilidade do participante e não refletem necessariamente a opinião da Editora Abril
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil