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VOVÓ SHIGUENO, SHAMBALLAH, MIGUEL BOTELHO, ENSO
SANTA FÉ, INÍCIO DE TUDO
A vovó acompanhou o desenvolvimento de várias molduras, várias no período entre o seu desembarque no porto de Santos em 1929 e a aquisição da propriedade de Santa Fé do Sul, no córrego do marruco. Outras foram surgindo e desenvolvendo, boa parte delas citadas no Espaço, Tempo, Luz e Moldura Shigueno. Foram basicamente cinco, levando em consideração a minha trajetória em comum com a vovó e familiares.
Quadrado, Moldura, tempo linear, círculo, enso, tempo cíclico, tempo e estamos descrevendo a dinâmica da vovó em Terras Brasis. Disse anteriormente que a vó produzia os seus discursos tendo em mente algo, uma forma e a minha primeira escolha foi a de um quadrado. Quadrado este inspirado na janela acima de um sofá cama azul, uma janela de onde podia ser visto o trecho de uma rua, do outro lado da rua uma calçada e terreno livre. Via-se também a casa dos Tamashiro.
Crie um quadrado imaginário. Trace quatro seguimentos de reta de comprimentos iguais, una as suas pontas formando o quadrado. Aloque então palavras nele. E não faça pré-conceituação sobre elas, a princípio veja apenas como simples palavras. Uma Moldura seria um quadrado alocando palavras, o mínimo necessário e suficiente. Tente agora criar um discurso.
Não é necessário partir do nada, aloque e faça discursos dos discursos. A exemplo da palavra Shamballah, colocada em foco quando encontrei com o sacerdote Okada. Shamballah não é uma palavra desconhecida, faça uma busca na net e encontrar-se-á n-discursos sobre, sendo então possível fazer o (n + 1)-ésimo discurso.
Voltando ao Okada, na ocasião ele estava celebrando o ritual de passamento do vovô Hiroiti, foi aí que o abordei perguntando sobre Shamballa, que sabia fazer parte dos ensinamentos do budismo esotérico.
Aloque Shamballa ou pode ser, é claro, outras palavras do seu interesse. É sempre possível fazer o (n + 1)-ésimo discurso, mesmo que um 1 centrado ou pessoal. Certamente o sacerdote Okada faria um bom discurso sobre Shamballa e deve, imagino, estar fazendo-o. A vovó fez os dela na sua época, normalmente voltados para os seus filhos.
Ouve um momento que ela tinha como Moldura José, Hiroiti, Shigueno - JHS - e Miguel Botelho, assim como as terras que eram o elo de ligação entre eles. Os integrantes do seu circulo eram o seu filho, ela própria, o marido, o comendador e as terras do arrendamento. José já havia crescido, o suficiente, para iniciar uma nova moldura. E assim ela, reproduzindo Toyoura, início de tudo, fez então o seu segundo deslocamento.
Em Santa Fé, no momento seguinte, a Moldura da vó passou a ser JHS e marruco, a qual dei o nome de Santa Fé, início de tudo, que foi uma das que mais fundamentou a trajetória dos Taninaga. Miguel Botelho e José / Catarina foram os protagonistas deste período, o primeiro como avalista e o segundo ativos dentro da restauração discursiva da vovó. Ela que evitava jogar conversa fora definira em Santa Fé um novo período de atividade. A partir do vazio de marruco o preenchimento. Formas, sentidos e conhecimentos foram desenvolvidos, em parte aplicação direta dos conhecimentos de mais de duas décadas acumulados anteriormente. Os resultados surgiram relativamente rápido ou a construção da Casa e Salão Comercial na cidade - um dos elementos da Moldura Shigueno -, uma casa de tijolo no marruco e recordo perfeitamente de outras obras:- celeiro, terreiro, pomar com pés de poncã, pinha, manga e laranja. Eu achava interessante o pé de kinkan que existia ao lado do celeiro, pelo tamanho dos seus frutos.
De maneira que a partir do novo vazio, Santa Fé, início de tudo, o desenvolvimento de dois centros ou marruco e Rua 14, José / Catarina e Hiroiti / Shigueno. Moldura e centro, moldura como elemento de apoio discursivo e o centro a partir do qual os nos entornos acontecem. O primeiro centro foi ativado pelo apoio do Comendador e o segundo do José / Catarina.
O Comendador, acionado pela vovó e vovô tendo em vista a ativação do primogênito, podia optar entre manter a situação ou apoiar. Entendo que o desejo dele era manter e, para tanto, oferecia a liberdade que a vó almejava, desde Toyoura, início de tudo até então, e ela vivia sob as asas desta liberdade. De maneira que o Botelho foi importante pelo apoio.
Já não era apenas um casal, mas podia agora contar com o primogênito e, com ele, mudar o esquema. A situação era equivalente a de Toyoura de 29, a de dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano e assim por diante. Nestas condições a tendência do discurso é tornar-se repetitivo só que agora não existia impedimento, nem por parte de familiares, parentes, tampouco de amigos ou conhecidos, de ninguém para realizar mudanças. Estavam sozinhos, livres para iniciar algo novo e isso todas as vezes que fosse necessário. Ganhara a sua liberdade por ter saído de Toyoura, início de tudo e pelos vazios das Terras Brasis.
Não havia raízes à mostra, nada. O que havia era a vó e Toyoura, início de tudo. Não como duas cousas distintas, mas una. Vó e Toyoura, início de tudo ou Shigueno, com todos os atributos e valores absorvidos na sua juventude, vivendo na terra, vendo o mar e o além mar. A Coréia está bastante próxima da costa oeste japonesa.
Quantas vezes a partir do Panorama de Toyoura a vovó pensou cruzar o oceano e aportar na Coréia? Talvez várias ou nenhuma, mas uma cousa é certa, ela e o Hiroiti foram dois dos 152 que viram o continental vazio das Terras Brasis.
Um casal, um centro livre para criar novas raízes, expandir na proporção da sua bagagem, das suas raízes e a vovó tinha raízes, pois havia levado Toyoura, início de tudo para as Terras Brasis. Ela foi o tempo todo autentica nos seus deslocamentos, com eles o surgimento de novos vazios e discursos.
Ela pode ter tido a felicidade de contar com os vazios que as Terras Brasis foram lhe apresentando, de contar com o talento dos seus filhos, mas tem o mérito de ter passado ilesa pela modernidade de 29 em Toyoura e pelas demais em Terras Brasis. Ocorre que existiam outras referências além do Dr. Nilson. Haviam os ferreiros Nino e o Osada, a Casa Marques, o posto de gasolina que havia nos fundos, uma fábrica de móveis ao lado do Nino, um imigrante nikkei dono de um bar na Rodoviária de Santa Fé, a mercearia Morimoto, os comerciantes Kumayama e Kobayashi, a Máquina Salvino, a Radio Santa Fé etc.
E entendo que um dos últimos lances da vovó foi, com a ativação da sua quinta moldura, recolocar o Japão no seu círculo. O primeiro retorno dessa ativação foi a Sapio de fevereiro de 1993, que fiz questão de lhe enviar. Na Sapio as falas de dois acadêmicos ou o nikkei norte americano Francis Fukuyama e o japonês Akira Asada, ambos abordando a questão da História. De maneira que de 29 a 93 o fechamento de um ciclo, com a inauguração do seguinte. Com outras referências, mais próximas daquilo que a vó tinha como centro. No circulo e nos limites da visibilidade a Sapio, Fukuyama, Asada, Karatani, Said, Baudrillard assim como os 7 duplos círculos da Sapio de novembro de 93. Todas estas referencias estão mais próximas dos nossos discursos, mas ainda longe daquilo que ela desejava então ou a restauração discursiva.
¨The end of history?¨ É uma pergunta bem nossa, afinal quais são as razões destas idas e vindas? As razões de Toyoura de 29, Santa Fé, início de tudo, Kakegawa de 92 e agora 2009? Elimine os dois zeros e teríamos o fechamento de um ciclo. Quais discursos justificam todas essas cousas? Independente disso uma cousa é certa e, antecipando, a vó disse simplesmente:-
¨Vá!¨
Contando a partir de 1993, de Kameyama a partir de onde foi enviado a Sapio, 16 anos depois surgem estas páginas. Elas estão à disposição de qualquer um, independente de origens, credo, crença ou nacionalidade.
Toyoura e o mar dos pescadores, as terras devolutas e impregnadas do passado e a cidade que caminhava no compasso da natureza ficou para trás. Escrevi anteriormente que a cidade mudara, existe agora o formidável Kawatana Grand Hotel. Santa Fé também mudou, conta agora com a Ponte Rodoferroviária Porto Taboado, mas ambas cidades desenvolveram numa linha diferente daquela da vovó.
Ela, que fora sempre ela, independente, livre, poderia até ter incorporado Kawatana Grand Hotel ou a Ponte. Não deu tempo, mas de onde ela está entendo que deve estar nos acompanhando. Penso que o que estou fazendo é o que ela faria, se estivesse viva e seguido o curso da história.
Antes de tudo a liberdade da fala, do verbo, que se transforma na da escrita ou um dos resultados da vovó Shigueno. Retornando ela na nossa era, dos email, net, site etc faria rapidamente esta transformação, dos discursos que tanto me encantou para as letras que na verdade são também falas. Falas do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil e da vó Shigueno.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil