Conte sua história › Anna Shudo › Minha história
Ainda no Brasil minha tia e minha mãe diziam pra eu tomar muito cuidado no Japão, pois fumava, bebia, mantinha as unhas impecáveis com esmaltes coloridos, falava alto, gargalhava, ficava brava sem cerimônia e era muito sincera. Diziam que as mulheres daqui não faziam nada disso, eram recatadas e discretíssimas. Ah! Sim, ledo engano delas. Em 90, logo depois da bolha econômica, elas eram maquiadíssimas, as unhas eram feias (naquela época ninguém fazia as unhas como agora), ainda colocavam a mão na boca para sorrir e, de fato, pareciam ser muito discretas. Até eu descobrir o que era "tatemae" (comportamento pautado na aparência) e "honne" (pensamento e comportamento verdadeiro). Então, aparentemente, são recatadas e discretas. Sim, até cair uns goles de álcool no estômago. Aí elas se transformam. Achei um horror! Com a desculpa do álcool dão em cima dos homens de uma forma tão descarada e vulgar, fumam feito chaminés e vomitavam pelas ruas. Aliás, homens e mulheres bebem demais. Eles trançam as pernas nas ruas e no dia seguinte entram no ambiente de trabalho como se nada tivesse acontecido. É impressionante!
Até hoje é tabu a mulher vestir uma roupa sem sutiã. Mesmo que seja um top tem um forro com bojo de sutiã. Aqui é pecaminoso mostrar os bicos dos seios. Todos os sutiãs têm bojo. Particularmente, eu que tenho pouco seio achei ótimo. Dá mais volume!
Quando fui pela primeira vez a uma praça imensa chamada Central Park, no centro da capital de Aichi - Nagoya, vi um monte de jovens com os cabelos pintados de tudo que é cor, tocando rock ao ar livre! Cadê os japoneses recatados? Cá entre nós, tinha uns cabelos arquitetados, espetados para cima cheios de gel, mas achei o máximo! Pensei comigo: "que bacana ver os jovens vivendo autenticamente!".
Fiz amizade com uma garota japonesa e com ela praticava cerâmica, saía para tomar um café, para fazer um lanche e, apesar do meu parco japonês, tínhamos boa comunicação. Comecei a namorar um libanês que fazia mestrado aqui. Ele apresentou um amigo turco para a minha amiga e sempre saíamos os 4 juntos. Numa festa internacional estava dançando com ele quando ela chegou e o convidou para ir ao motel na cara dura. Fiquei pasma com a perua! Disse-lhe que no meu país as amigas não fazem isso e que eu não queria mais a sua amizade. Ela achou um absurdo. Discutimos e só não dei uns bofetões nela porque a lei não iria me favorecer.
Namorei alguns japoneses. Os homens com faixa etária dos 35 anos pra cima são uns indefinidos. Têm uma dificuldade tremenda de assumir algo, parece que têm complexo de Édipo, fogem no trabalho e são super machistas. O maior choque cultural é que o casamento ainda é para a procriação, por isso, mesmo amando a sua namorada, se ela não tiver a saúde perfeita não se casam. E vice-versa. Se ele não pode ter filhos por algum problema, dificilmente se casa. Tive um namorado assim.
No trabalho também são altamente machistas. Naquele tempo e ainda hoje a mulher é a que serve o chá e o café, é a que tira cópia para eles e é sempre vista como ser profissional inferior. Isso foi um choque muito grande! Imagine, um país de primeiro mundo com esse tipo de comportamento... Tanto que ainda hoje os salários das mulheres são inferiores aos dos homens, mesmo que sejam mais competentes. Ainda, sobre o ambiente corporativo, achei um absurdo que as promoções ocorrem de acordo com o passar da idade, ainda que não tenha habilidades para isso. Graças a Deus o Japão está mudando e, recentemente, coisa de uns 3 anos, o mercado está valorizando as habilidades e competências. Mas como o povo não está preparado para aceitar essa nova cultura, nas empresas tradicionais há muita resistência. Como exemplo, s mais velhos não aceitam ter um superior mais jovem ou do sexo feminino, são avessos a mudanças.
Quando cheguei aqui o emprego na maioria das empresas era vitalício. Goste ou não, o sujeito se aposentava na empresa onde ingressou logo depois de ter se formado na faculdade. Compreensível, pois os velhinhos de hoje, jovens de ontem, se submeteram a muitos sacrifícios no pós-guerra para construir o novo Japão. Esse panorama mudou porque os jovens querem escolher e planejar sua carreira profissional. Os jovens querem empreender, competir, se aprimorar e crescer, afinal eles têm liberdade, cresceram num mundo aparentemente pacífico e cheio de conforto.
Em geral, as mulheres casadas que não trabalham fora não têm relações sexuais depois do nascimento dos filhos. Ela é mãe, dona de casa e reserva a toda sua energia para regar amor e carinho aos filhos. O lado mulher vai pro lixo. Daí os maridos procuram relacionamentos extra-conjugais e estatísticas apontam que boa parte das mulheres também já tiveram casos com outros homens que não seus maridos. Fiquei horrorizada quando soube disso e esse assunto é falado abertamente entre as mulheres, assim como em revistas. A imagem de mulheres recatadas é uma farsa, salvo raros casos.
Uma coisa que me assusta muito é o índice de divórcio na terceira idade. As mulheres que só serviram o marido como domésticas, esperam que eles recebam a aposentadoria, a qual tem que ser dividida com ela (sob a proteção da lei), para dar um chute no traseiro do marido. A aposentadoria dele é carta de alforria para ela.
A maioria dos casais dorme em camas separadas e até em quartos separados depois de parar de procriar. A maioria não tem diálogo, a não ser para tratar de assuntos relacionados aos filhos. A maioria dos homens ainda entrega todo o salário na mão da esposa. Ela é a administradora doméstica.
A família é uma instituição quase que falida aqui neste arquipélago.
Aqui tem homeless (sem-teto) aos montes. Estima-se cerca de 30 mil concentrados em Tóquio, Osaka e Nagóia. Conversei com muitos deles e cada um tem uma história triste. Muitos perderam o emprego e foram enxotados de casa, outros perderam a capacidade de sonhar e outros pouquíssimos escolheram esse caminho.
Aqui o filho mata o pai, o neto mata a avó, a mãe mata o filho recém-nascido, tudo porque não ganhou o que pediu ou porque é "urusai" (algo como chato que fala demais) e o índice de violência doméstica é alto. Isso comprova a teoria de que o alto grau de escolaridade e a categoria sócio-econômica não influenciam na questão da violência.
O índice de suicídio infantil é um dos mais altos do mundo e o suicídio na fase adulta é sempre marcado por algum fracasso, impotência ou para "pedir desculpas" por algum ato que supostamente tenha incomodado a família ou a sociedade.
O "ijime" (uma pessoa ou um grupo judiar alguém por mera maldade) existe, não só na escola, como em ambientes corporativos.
Fiquei impressionada com a quantidade de tarados. São ladrões de calcinha e sutiã dos varais, assédio sexual, bolinação nos trens, estupro de menores, volume de mídias pronográficas com pedofilia e violência sexual e etc. E as mulheres daqui não gritam ou pedem socorro, tampouco denunciam, por isso, esse tipo de violência só tem aumentado.
Outra coisa que me impressionou desde que cheguei são os homossexuais. Nada contra eles, pois tenho amigos, mas para uma sociedade fechada como esta, cheia de preconceitos, me assustou por serem tão assumidos. O número de bares e clubes GLS é espantoso, assim como de prostituição deles.
Por falar em prostituição, apesar da lei parecer ser severa, a coisa corre solta e livre. É severa só na aparência. Estudantes, office ladies como são chamadas as funcionárias de escritório, a donas de casa se prostituem para obter dinheiro a fim de comprar as sonhadas bolsas e acessórios da Louis Vuitton, Chanel e etc. As griffes mais lindas e caras do mundo são artigos pra colegiais. Pode? Daí as griffes perdem aquele requinte, glamour e o sonho de consumo, entende? Elas passam a ser triviais. Fora esse tipo de prostitutas há as profissionais de todos os tipos e níveis, dependendo das casas onde trabalham. Mas é em larga escala e a sociedade vê isso como "coisa normal".
Por hoje escrevi do que me assusta ainda, mesmo vivendo há 18 anos aqui. São valores muito diferentes dos nossos, por isso, não posso dizer se são corretos ou não, não posso julgá-los mas confesso que me assustam ou me chocam.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil