Conte sua história › Anna Shudo › Minha história
Nada acontece por acaso. Frase clichê, né. Vou me explicar.
Nós que somos descendentes de japoneses, não viemos para cá só para ganhar uns ienes a mais, para passear ou para viver uma cultura diferente.
Assim como aconteceu comigo, acredito que muitas outras pessoas devem ter passado por experiências semelhantes.
Junto com o aprendizado do idioma ganhei muitos outros presentes valiosos, os quais estão guardados num local muito mais profundo do que atrás das retinas dos meus olhos. Vou contar de um deles.
A paisagem amanheceu toda branca num dia de muito frio. Nessa época, acho que em 93, trabalhava num clube de golfe como caddie. O diretor do clube anunciou que durante uns 3 a 4 dias ficaria fechado pois era impossível receber visitantes pois os cursos estavam com mais de 40 cm de neve. Mais do que depressa fui verificar se havia passagem de navio para a província onde meu pai nasceu. Quando contei para duas colegas do clube que iria fazer uma viagem para me conhecer melhor elas resolveram se aventurar comigo.
Saímos no mesmo dia de Kobe (capital de Hyogo) rumo a Beppu, em Ooita, cidade vizinha de onde nasceu meu pai. A saída do Porto de Kobe foi simplesmente maravilhosa. Um sol imenso, grande, vermelho, se punha manchando o céu límpido de inverno em tons que variavam do rosa a púrpura. O navio era imenso e nós parecíamos crianças curiosas dentro dele. Andamos por tudo. Chegaríamos ao nosso destino pela manhã. Depois de jantar, tomar um drink no navio, ainda fomos tomar uma brisa gelada no deck.
Ao amanhecer o sol nasceu enorme e laranja forte em Beppu. Imaginei que meu pai e sua família teriam saído daquele porto com destino ao de Kobe de onde partimos, para atravessar mares e chegar no Brasil, numa viagem de quase 2 meses. Se uma noite é cansativa, imagine passar mais de 1 mês a bordo só vendo água e céu.
Em Beppu fizemos o "Jigoku Meguri", algo como o passeio pelo inferno, pois a cidade é cheia de brotos de águas termais. Tem vapores dessas águas com temperatura de 90 ou cento e poucos graus por todos os lados. Servem verduras, ovos e doces cozidos nesses vapores.
Louca pra ir logo pra cidade natal chamada Usuki, minhas colegas e eu tomamos um trem prá lá. A viagem é linda! O trem passa pela serra a beira-mar. De um lado as praias e de outro vimos lindas chácaras de laranjais. Vimos também pessoas imersas nas areias quentes e pretas das praias, pois dizem que a pele fica bonita.
No caminho, com o coração pulsando forte, ficava me lembrando das histórias que meu pai contava. Ele nasceu e viveu em Usuki até os seus tenros 4 anos mas se lembrava de tudo. Falava das ruínas do castelo, do "torii" (espécie de arco vermelho da religião xintoísta, o qual pode ou não ser algo como a porta de entrada) e do porto. Entregamos os nossos bilhetes na estação e aproveitei para perguntar onde ficava o "torii", pois de lá saberia me localizar para ir as ruínas onde ele brincou e ao porto. Dito e feito, de lá me orientei.
Foi uma emoção tão grande chegar as ruínas que caí em prantos. Parece que fiz uma viagem ao túnel do tempo e vi meu pai correndo pelo parque do castelo que foi destruído numa das guerras que não sei precisar qual. Minhas colegas de trabalho também se emocionaram como se fosse uma viagem delas também.
Ali, naquele parque estava a minha origem.
Demorei a me recompor. Vi imagens como num filme, dos meus antepassados. E fui tomada de um sentimento de gratidão imensurável. Em reverência agradeci aos meus antepassados por terem atravessado mares para se arriscarem no Brasil. Lá meu pai cresceu, se casou com uma nisei, se naturalizou brasileiro (por isso sou sansei, se não tivesse se naturalizado seria nisei) e amou o Brasil. E lá nasci. Nessa hora senti o que é amor a Pátria, talvez pela primeira vez. Senti orgulho de ter nascido brasileira, pois poderia ter nascido em Usuki. Se tivesse nascido lá jamais conheceria o restante do Japão e muito menos outros países. Mas, ao mesmo tempo, gostei da cidade. Me simpatizei por ela como se já tivesse vivido lá.
Bem, minhas amigas e eu resolvemos procurar um lugar para almoçar. Por intuição escolhi uma casa onde havia uma placa com a seguinte inscrição: "ofukuro no aji" (comida feita pela mãe). Foi ótimo mas novamente chorei. O sabor, a textura, a cor... tudo me fez lembrar a comida que a minha avó, mãe do meu pai, fazia. Era um sabor que eu já tinha experimentado e tinha me marcado. A minha avó faleceu quando eu era adolescente mas ela acho que foi ela quem me guiou para esse restaurante.
Com essas experiências minhas amigas também se animaram a visitar a cidade natal de seus avós.
A tarde fomos visitar as rochas encravadas de budas marcando a entrada dos primeiros budistas na região. O lugar é cheio de energia, mágico!
Comprei "omiyage" (presentes locais) para mandar para meus familiares no Brasil. Mais tarde soube pela minha mãe que minha tia (irmã mais velha do meu pai) se emocionou ao comer as delícias típicas que enviei para eles. Ela caiu em pranto ao se relembrar dos sabores de sua infância.
Para mim, essa viagem foi o início da compreensão dos por ques que carreguei durante 30 anos. Foi o início da minha viagem do auto-conhecimento.
Foi o retorno da minha alma a um dos locais por onde ela passou durante a longa existência do passado.
Não vim ao Japão por acaso.
Vim para conhecer um pouco mais sobre a família Shudo, para saber da minha origem e para compreender os meus familiares e parentes através do povo nativo.
"Tudo vale a pena quando a alma não é pequena", são palavras de um dos poetas preferidos. E faço uso delas para ilustrar o quanto foi importante ter vindo ao Japão. Ou melhor, de ter feito o caminho inverso de meus antepassados para compreender uma parte da minha (e da nossa família) existência. Valeu a pena! Tem valido!!!
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil