Conte sua história › Ana Paula Akemi Matsuda Morioka › Minha história
Ela só tem sete anos, mas é esperta que só ela! Olhos inteligentes, de quem sabe o que quer e onde vai chegar, mas por enquanto, só vai chegar até o fogão à lenha arrastando a velha caixa de tomate vazia para servir de escadinha e poder alcançar as panelas de ferro pesadas. As roupas largas, meio encardidas e longas demais para seu pequeno tamanho só atrapalham o serviço, mas não reclama. Não há tempo para reclamações. São (por enquanto) três irmãos abaixo dela e mais seus pais para alimentar e depois do almoço e da louça limpa, ainda tem as roupas para passar com o ferro a carvão. Vocês têm idéia do peso de um ferro a carvão? Daqueles de ferro mesmo, que um adulto mal consegue erguer com uma das mãos? Pois é este mesmo que a pequena Hiroko deve utilizar para passar as roupas da família. A mãe está atendendo fregueses na pequena mercearia da família, um cômodo contíguo à casa. O pai, sempre preocupado e severo, luta na cama contra uma úlcera que não o deixa produzir o que gostaria e cuidar da família; preocupação esta que só faz agravar seu estado. Viera do Japão jovem e sozinho, apenas acompanhado por tios e parentes, com espírito desbravador e aventureiro. Pretendia ficar por aqui mesmo. Não viera para voltar logo ao Japão, então, conhecendo uma jovem da mesma província de origem, Saga, casou-se aqui mesmo no Brasil; aprenderam o mais rápido que puderam a tão estranha língua portuguesa e lançaram-se ao comércio. Ele, primeiro trabalhando como ajudante num distribuidor alimentício em Pereira Barreto, depois já montando seu próprio empório em Araçatuba.
A velha caixa de madeira é arrastada novamente, agora para o tanque. Toda aquela roupa precisa ficar branquinha ao ser insistentemente esfregada e tem que ser estendida antes do sol se pôr. A intenção é que seque todinha até o cair da noite. Hirotiam nem se importa com as gotas de suor que caem de sua testa e misturam-se à roupa ensaboada, afinal, tudo está molhado e tudo irá secar em breve. Tudo pendurado, tudo secando, passa pela casa, olha as crianças, despede-se rapidamente fazendo recomendações à irmã logo abaixo dela para que comande a casa e cuide dos irmãos até ela voltar. Sem perder tempo, alcança sua velha bicicleta, que na verdade ainda é gigante para ela, então tem que pedalar em pé, pois o banco é muito alto! Dirige e se vira bem a nisseizinha que parece carregar o mundo nas costas! Um mundo que pareceu desabar para seu pai com o fim da guerra, a derrota dos japoneses, a humilhação no país estrangeiro, mas que ela tão valentemente decidiu enfrentar com um otimismo e uma determinação sem igual! Ela acredita que tudo sempre dará certo porque está se esforçando para isso. Entra pela porta dos fundos na loja e pega com a mãe as sacolas com as entregas do dia. O difícil é lembrar qual sacola deve ser entregue para qual freguês e ainda saber o endereço de todos! Difícil, mas não impossível para Hirotiam, porque eram desafios e desafios ela sabia bem enfrentar desde que nascera! Sua irmã mais velha havia morrido bebezinha devido às precárias condições de vida da família. Falecera de febre, diarréia, alguma dessas coisas “sem cura” na época, para os imigrantes. Nascer e sobreviver ali já era um grande desafio, então, cuidar da casa, fazer entregas de mercadorias pesadas e para locais longínquos não era diferente. Era só o que conhecia e só o que sabia fazer: vencer novos desafios a cada dia. Também não questionava por quê tinha que fazer tudo na casa sozinha já que entendia que, por ser a mais velha dos irmãos, era responsável por eles. Deixaria de estudar se fosse preciso; até de comer ... assim a haviam ensinado. Mas desde aquela época já tinha um pensamento firme: mulher também tem que estudar, também tem que ganhar seu próprio dinheiro e ser alguém na vida. Como entender e aceitar que só seus irmãos iriam para a escola para um dia serem doutores? Como enfrentar seu severo pai, que achava besteira mulher ir para escola ? “Para que?” Questionava ele. “Mulher tem que se casar e cuidar da casa, do marido e dos filhos. Só precisa saber cozinhar, costurar ... Cuide bem dos seus irmãos para que eles, sim, sejam grandes doutores!” E cuidou. Cuidou de todos eles, meninos e meninas e ainda acumulou serviços extras na mercearia, mas sempre conseguiu um consentimento aqui, uma aprovação ali, ainda que sob protestos, para poder continuar seus estudos. E estudou. E ainda estuda e ainda aprende muitas coisas no alto de seus quase setenta anos, só pela alegria de ser livre para aprender o que quer que seja, o que quer que escolha aprender.
60 anos e duas gerações depois, vejo um menininho de sete anos rechonchudo, bochechas coradas e pés imundos, arrastando uma cadeira pela cozinha para alcançar, no alto do armário branco, na pontinha dos pés, uma xicrinha de café e preparar um remédio caseiro para sua mãe adoentada. Não é nada sério, apenas gripe forte, dor de garganta, mas a preocupação do menino é como se fosse. Papai está em viagem de negócios e quando isso acontece, é ele quem deve cuidar da casa e de todos. Pergunto se quer ajuda para pegar a xícara e tento me levantar da cama, mas ele logo responde, em linguajar bem brasileiro do século vinte e um: “Relaxa, mãe, deixa que eu me viro!”. Trepa com os pés sujos em outro armário para pegar o limão na fruteira, deixando um rastro negro, encardido na porta, mas nem percebe. Seu foco é o remédio para sua mãe. Corta o limão ao meio e o espreme na xícara. Acrescenta mel e gotas de própolis, mistura tudo com pressa e me entrega, na cama, com carinha de preocupado. Deita-se ao meu lado e me olha bem no rosto para ver se enxerga uma melhora imediata. Abro um sorriso para que possa sentir a melhora imediata que me trouxe.
Este segundo episódio remete-me ao primeiro. Não que seja de hoje que o menino haja desta maneira tão prática, tão útil e funcional, mas é que desta vez fiz esta ligação entre estas duas figuras tão singulares. É certo que são situações, épocas e pessoas muito diferentes, mas não sei se por obra da personalidade, hereditariedade ou afinidade mesmo, o mesmo olhar de quem sabe o que quer e onde vai chegar é comum em ambas as personagens: batiam Hiroko e magoo Eric . Não sei ao certo quanto de Moriokas, Matsudas, Egashiras, Enomotos... há naquele corpinho roliço que tanto amo, mas é certo que desta mistura saiu um ser especial e se, como a batiam Hiroko, trouxer tanto bem à tantos brasileiros, japoneses, nisseis, sanseis, yonseis ... o mundo agradecerá e se beneficiará e será muito melhor!
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil