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Família Matsuda, Guapiranga-Lins/SP
SHAKUHACHI
Após o banho diário no ofurô que ficava atrás da casa de madeira e chão de terra batida, vinha lentamente, braços arqueados, para a sala. Nós, crianças, estávamos todos sentados no chão brincando, conversando ou jogando alguma coisa. Ele não nos inpirava medo, de forma alguma! Ditiam sempre fora bonzinho e carinhoso com as crianças, apesar de mal falar português e tinha muita paciência com todos os netos. Sentava-se em sua cadeira habitual com as costas eretas, empunhava a grande flauta de bambu que ele mesmo tinha confeccionado (na época parecia muito maior porque nós é que éramos pequenos); apoiava-a debaixo dos lábios inferiores, fazia caretas, ajeitava-a, espremia-a, assoprava, dava umas cuspidinhas, mexia mais uma vez os lábios como a procurar harmonizar a maciez da boca com a solidez do bambu e só então começava a tocar. Quem já ouviu o som de um “shakuhachi” antes sabe que penetra na alma e impregna-se para sempre na memória, tanto é que até hoje, trinta anos depois, quando entro na sala da casa onde antigamente ditiam tocava, posso “ouvir” a melodia vibrante e harmoniosa, o som oco e seco que saía de sua enorme flauta. Desde que faleceu, há mais de vinte anos, nunca mais ouvi um shakuhachi tocado ao vivo. Comprei CDs japoneses e americanos do gênero em busca de algo que se aproximasse daquele som que ouvia na infância, mas nenhum deles trazia a melodia tranqüila que me acalmava todos os dias das férias, às seis horas da tarde, pouco antes do jantar.
SPLASH!
Deitada no quarto ainda escuro, acordo sem reconhecer o espaço à minha volta. Aos poucos vou me dando conta dos detalhes e tudo começa a fazer sentido: o teto escuro de madeira encardida, o tablado comprido, muita gente querida ao meu lado, cada um com seu ofuton, o mugido insistente do boi lá no curral, o cheiro misturado de shoyu, café, lenha do fogão e terra. Ah... a terra! A gente acordava com aquele barulhinho repetitivo e já tão íntimo que soava como um despertador carinhoso que quer nos acordar sem , no entanto, irritar: splash, splash, splash, splash ... ! A batiam vinha lá da cozinha batendo o balde de alumínio escuro e amassado de tanto uso pelos cantos, jogando um punhado de água em cada canto da casa para molhar o chão e não levantar poeira, afinal, logo logo nós todos estaríamos andando e correndo pela casa, levantando pó e enchendo a mobília de uma película vermelha eterna, mas ela não se abatia e continuava tranqüilamente seu serviço, baixinha como era, quase a tocar o chão a cada espalmada que dava na água. Levantávamos em alvoroço e cumprimentávamos a todos com um sonoro “ohayo-gozaimaaaaaaassu”. Batiam abria um sorriso tímido, mas tão meigo que era capaz de nos beijar a todos de uma só vez! Na época, ainda não valorizávamos seu serviço matinal, mas anos mais tarde cheguei a acordar cedinho para ajudá-la nesta tarefa tão simples e tão vital. Quem disse que conseguia completar dois cômodos? O balde pesava, as costas doíam e os pés se melavam com a mistura. Ela então passava por mim rindo muito, pegando o balde de minhas mãos, seguindo sua tarefa inocentemente, indelevelmente, como sempre.
SHODO
Folha de papel em branco bem fino e comprido, uma caixinha surrada de papelão acima da folha com pincéis muito macios de diversas espessuras e uma pedrinha retangular preta interessante em declive na parte superior formando uma rampinha. Ditiam trazia um pouco de água, molhava esta pedra em declive e com uma outra pedrinha retangular começava a raspá-la pacientemente, por diversas vezes, até conseguir uma água preta muito líquida. Este ritual diário era acompanhado bem atentamente por dois olhinhos que se deitavam por sobre a mesa para ficarem na mesma altura dos pincéis quando entrassem em ação. Não nos falávamos. Eu não perguntava nada e por incrível que pareça, nestes instantes, ficava quieta. Quem me conhece sabe que isto é muuuuuuiiiiiito raro de acontecer (muito mais naquela época), mas ditiam conseguia “me prender” desta maneira. Nunca pediu silêncio ou teve que chamar a atenção nesta hora. Eram os instantes sagrados! Escolhia, então, lentamente um dos pincéis, molhava-o na tinta preta que havia preparado, fazia outros movimentos ritualísticos com o pincel até obter a quantidade de tinta exata para daí apontá-lo para o papel. Nesta hora meus olhinhos não desgrudavam mais deste pincel molhado. À partir daí, toda a atenção seria pouca para acompanhar tudo o que estava para acontecer. Ditiam levantava a cabeça e fechava os olhos, o pincel molhado no ar, como que querendo visualizar os ideogramas que desenharia ali naquele espaço de papel. Nestes segundos de concentração eu até segurava a respiração para não atrapalhá-lo, para daí ver o pincel começar a se movimentar lenta, mas efetivamente no papel. Que visão! Em questão de segundos o pincel, ora tocava o papel mais densamente, formando um traço grosso, hora elevava-se delicadamente para criar uma curva leve e fininha, hora mal tocava o papel para que o traçado ficasse escasso mesmo. Até o que parecia falha era proposital. Genial! Na época não podia acompanhar o pincel e os movimentos das mãos junto... que pena! Nunca soube quanta filosofia ou poesia (hai-kai) ditiam traçou e deixou registrado e também nunca ganhei um trabalho sequer dele, mas não me lamento, não. Delicio-me com estas lembranças e “visões” que para mim já significam muito! Poder ver os movimentos delicados daquelas mãos tão rudes e calejadas bem de pertinho, o preto tingindo lentamente o branco em formatos precisos e os kanjis aparecendo como num passe de mágica já é poesia suficiente e da mais alta qualidade !
O SAMURAI BÊBADO DO OSHOGATSU
É dia 31 de dezembro. Logo mais faremos a contagem regressiva para o início de mais um ano, que para mim, ainda são poucos. Os meninos soltam “peidos de velha” debaixo das cadeiras dos adultos e saem correndo e no resto do tempo provocam as meninas, estas fogem dos sapos enormes e gordos que insistem em participar da festa e dos primos atentados, as mulheres andam para cá e para lá com pratos de comida nas mãos e os homens conversam sobre a pescaria do dia. Sempre entre o jantar farto, saboroso e bi-cultural e a passagem do ano em si, fazemos os teatrinhos, as cantorias e brincadeiras que desde que me conheço por gente fazem parte da tradição da família. Realmente nossa família é diferente! Nada de japoneses calados, introspectivos e sérios que tradicionalmente caracterizam a raça, mas temos nossos rituais, só que com risos largos, abertos e muito espontâneos desde a primeira geração. Mas voltemos ao oshogatsu. O ponto alto de todas as apresentações sempre é a do ditiam. Estamos todos sentados em volta do palco improvisado no barracão ou terreiro onde acontece a festa. Netos na primeira fila e os demais familiares e amigos sentados em volta. Ditiam prepara-se sozinho na sala reservada. Durante o dia já havia separado seu próprio figurino e os apetrechos que utilizaria em sua apresentação. Não sei se ensaia antes, mas na hora sai tudo muito natural e bem convincente, pensamos nós. Lá de dentro ele anuncia que já está pronto. Silêncio total na platéia. De repente, surge um samurai enorme(ditiam era bem alto), cambaleante; numa das mãos uma garrafa de saquê amarrada numa cordinha bem clarinha, na outra um guarda-sol de papel com varetas de madeira, já meio rasgado e tosco, mas tudo bem; chapéu de palha de aba muito larga na cabeça preso pelo queixo, roupas de samurai bem surradas e guetás de madeira para homem, porém bem altos. Penduradas nas laterais, as espadas apresentam-se displicentemente dispostas porque o samurai realmente já passou de todos os limites na bebida. Inicia-se então, um canto lamentoso e angustiado de quem literalmente está sem rumo, sem destino, sem perspectiva na vida. Um canto, hora forte, hora apenas um fio de voz engasgado, embargado, que traduz todo sentimento de um verdadeiro ronin, o samurai errante, sem trabalho, sem destino, sem dono, sem exército, sem ter por que lutar. Ditiam Matsuda transformava-se! Todo ano um novo canto, todo ano uma nova história, mas sempre o mesmo tema, o mesmo lamento: a angústia do ronin.
E QUE NINGUÉM DUVIDE QUE QUEM TRAZ NO CORAÇÃO LEMBRANÇAS COMO ESTAS SEJA MUITO FELIZ!
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil