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Ricardo Miyake

São Paulo / São Paulo - Brasil
62 anos, Professor Universitário, Poeta e Revisor

O medo do goleiro


Todos já tiveram, sem exceção, ao menos um grande amor na vida. Ainda que limitado a uma única experiência – em geral adolescente; em alguns casos na fase madura – vivenciar o nascimento disso que será o tormento fundamental da existência humana é, sem dúvida, uma daquelas coisas que se farão imprescindíveis na educação sentimental de qualquer ser humano que se preze. Na minha vida, o primeiro desses grandes amores talvez se localize num período entre meus oito e quatorze anos, início da década de 1970, logo que comecei a estudar numa escola estadual, recém-reformada – por dentro e por fora – pelo governo.
Conheci Márcia numa sala de aula, segundo ano do antigo primário, hoje primeiro grau. Éramos bem umas trinta ou quarenta crianças, todas muito parecidas em suas carências e capacidades. Num tempo em que os hormônios pareciam só vir depois dos treze ou quatorze anos, sermos "crianças" não chegava a ser bem uma ofensa. Naturalmente, havia algumas mais desenvolvidas que outras, mas nada que chegasse a atrapalhar uma certa homogeneidade próxima à do leite Ninho Instantâneo. Mas ela estava lá, destacando-se no meio daquele perigo de algazarra, com seu perfil arrebitado, num orgulho ainda sem consciência, balançando os cabelos... vá lá: claros, um ouro impuro mas brando em meus olhos castanhos. Sei que foi ali, naquele lugar, um segundo da esperança que ela ergueu, um sorriso e o exercício de matemática sem solução, foi bem ali que passei a amar secretamente Márcia e seus mistérios.
Até o grande incidente que inaugurou nosso período de separação, por volta dos treze anos, havia – não sei bem como dizer – havia sempre um clima de entendimento entre nós dois. Por imposições escolares, Márcia e eu costumávamos nos ver cotidianamente, na casa de nossa professora. Eu, como o melhor aluno da classe na época, bem entendido; Márcia como sobrinha-neta. Isso desde os oito anos de idade, uma convivência pacífica, ainda que cercada de cuidados de minha parte, sem saber exatamente o que me impelia a querer ficar mais e mais a cada dia, sentindo o perfume do banho tomado, um conforto incômodo que emanava de minha amiga, misturando regras gramaticais e ciências naturais, geografia e história em estudos sociais. O fato é que Márcia era uma presença maior que o Ultra-Seven em minhas tardes sem lição de casa ou futebol na rua. Sei que parece idiota, talvez fosse mesmo, porque todos o éramos naqueles tempos incontestáveis; mas Márcia e eu formávamos alguma coisa boa, de que eu não sabia precisar a exata matéria.
Isso, até o primeiro rompimento, objeto de outro relato, já antigo. Algum tempo mais tarde, ambos entrados na adolescência, voltamos a estudar na mesma sala. De início, separados por uma torrente de amigos e inimigos, por comportamentos e, principalmente, por uma espécie de namoro que ela começara no ano anterior, com um dos chamados "repetentes", numa época em que isso era motivo de estigmatização por parte de todos. Rubão, era como o chamávamos nós, os "estudiosos", por motivos que iam da obviedade até o obscuro das conversas maliciosas. Seja como for, nada me parecia tão distante quanto Márcia de braços dados com Rubão, e pensamentos nada românticos se pendurando no trapézio machadiano de minha cabeça me diziam que eu nunca mais conquistaria Márcia, que era assim mesmo, o mundo pertencia aos mais fortes. Bem, não diria o mundo todo, mas pelo menos sua parte feminina, que era o que importava naquele momento. O fato é que minha outrora amiga como que parecia se comprazer de desfilar com os músculos de Rubão diante, principalmente, de mim, recolhido num canto do pátio com minha magreza de não-esportista, junto a meus iguais.
Naquele ano, o último de nossa inocência, a direção da escola resolveu promover um campeonato interno de futebol de salão, e o torneio da oitava série envolvia apenas quatro classes, entre elas a minha. Em princípio, nada que me dissesse respeito, até sabermos que a condição "sine qua non" para participar era o desempenho, digamos, acadêmico. Traduzindo: notas baixas, "vermelhas", como dizíamos, excluíam o pelejador do time. Traduzindo a tradução: fui alçado à categoria de titular, eu que, apesar de gostar do esporte, nunca me considerei nada além de um jogador esforçado. Apesar disso, e para resumir a história, conseguimos levar o torneio até uma partida de desempate com a classe favorita, aquela em que jogava – adivinharam – Rubão, inacreditavelmente isento das sanções escolares. Na torcida, outra obviedade desta história: Márcia. O jogo prometia ser um massacre, já que Rubão e companhia, mordidos pela derrota diante de nós no jogo anterior, juravam vingança. Para aumentar o clima de perigo, uma garoa já não tão paulistana tornava o piso da quadra tão seguro quanto amor de adolescente. Com tudo isso, havia entre os jogadores de nosso time, talvez mais em mim que nos demais, um desejo, uma esperança, quem sabe uma confiança de vencer, de mostrar uma capacidade que nós mesmos desconhecíamos, e Márcia ali sentada, olhando para mim, para Rubão, eu não tinha bem certeza, sei que essa vontade foi tomando conta da gente, próximos à beira do milagre, que é o que esperávamos. A verdade é que o jogo começou nervoso, nós apenas tentando impedir que o adversário fizesse o gol, até, num instante distraído, a bola sobrar para mim, cara a cara com o goleiro, e eu acertar o chute com raiva calculada, um a zero. Então, quase sem querer, meus olhos se voltaram para Márcia, ignoro com que intenção, e não vi nada, ou melhor, vi exatamente isso: nada. A Márcia que eu conhecera e amara, isso eu percebia naquele momento, ainda que não tivesse palavras para o dizer, aquela Márcia não existia mais, pode ser que nunca tivesse existido, fruto de desejos infantis e adolescentes, só sei que minha Márcia passou a ser apenas uma imagem emoldurada no quarto de meus fantasmas pessoais, tamanha a impressão causada por aquele olhar, o primeiro de muitos que eu teria de enfrentar na vida.
Depois daquilo, a partida não fazia mais qualquer diferença, ao menos para mim. Tudo se quebrara, sem solda ou cola possível que não o tempo, mas não somente os dois de um jogo de futebol. Vencemos, para não se dizer que a perda foi total. Vencemos os favoritos, levamos a taça, as medalhas, as pequenas glórias de nossos quatorze anos. Vencemos, sobretudo, nossos temores mais evidentes. Mas aquele gol marcou um fim e um começo, que só hoje sou capaz de compreender em todas as implicações. As mulheres movem a vida, afinal, e isso eu percebi quando Márcia beijou um Rubão desconsolado naquela noite plena de vitórias, derrotas, e novos saberes. As medalhas e a taça sumiram com o passar do tempo, assim como meus companheiros de jornada, muitos ainda vivos, outros nem tanto. De minha ex-amiga, soube, recentemente, estar casada e feliz, longe de Rubão. O beijo de Márcia, esse, no entanto, está comigo até hoje, marcado na pele e nos olhos assombrados pelo desejo. Mudo. Como o medo do goleiro na hora do gol.


Enviada em: 04/07/2008 | Última modificação: 04/07/2008
 
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Comentários

  1. Gilberto Koji Miyake @ 1 Fev, 2008 : 19:16
    Gostei muito! E, interessante: fatos são fatos. O que muda é a opinião ou a impressão que cada um tem do que aconteceu. Lembro-me bem do Aílton, puxa... naquele tempo, a morte não fazia parte do nosso cotidiano. Éramos invencíveis. A pressão que você sentiu, contrapõe-se à minha quase inexistência. Fui mais livre que você, thanks God! Abraços Seu irmão. P.S.: Posso gravar um playback de Birthday? hehe

  2. Márcia Y. Takeda @ 11 Fev, 2008 : 07:41
    Entendo o que vc quer dizer... Mas talvez porque somos cobrados pelos 2 lados, procuro sempre me aprofundar em leituras, seja de literatura brasileira que a japonesa. Gostei do seu texto "Preconceito". Márcia

  3. Francis Neves @ 12 Fev, 2008 : 15:05
    Olá, Ricardo! Primeiramente, gostaria de dizer que adorei suas histórias! Especialmente o texto "Preconceitos". Eu sou aluna de jornalismo da Unesp e estou escrevendo uma matéria em comemoração ao centenário da imigração japonesa. Estou à procura de imigrantes e descendentes que possam falar sobre o assunto. Vc toparia uma entrevista? Meu contato é franneves@yahoo.com.br. Obrigada! Até.

  4. Rita de Cássia Arruda @ 4 Abr, 2008 : 07:45
    Adorei seu relato, Ricardo !!! Você tem, verdadeiramente, alma de poeta. Fico aqui imaginando se você seria parente de minha amiga Kaoru. Sei que ela tem (ou tinha) parentes no Brasil, mas nunca os conseguiu localizar. Sobre ela e minha outra amiga japonesa, Aki, deixei registrada minha história aqui nesse espaço maravilhoso que a Abril nos proporcionou. Bom... Ao contrário de você, eu, inversamente, para ser bem redundante, achava os japoneses uma gracinha, quando adolescente. Meu irmão tinha um colega de sala, Mitoro, nissei, que era puro charme com aquela sua beleza oriental. Viva a diferença !!! Parabéns e obrigada por compartilhar conosco sua história.

  5. Elisa K. @ 2 Mai, 2008 : 15:54
    Belos textos, sr. Miyake. Sobretudo os textos "Preconceito" e o "Teoria do medalhão enviesado". Percebe-se a Literatura no seu sangue. Egomania ou não, todos já tivemos uma Bettina nas nossas vidas, não? Abraços.

  6. Paulo Eduardo Castaldi @ 20 Jun, 2008 : 16:07
    Como podem ver pelo meu nome, não sou descendente de japoneses, mas de italianos. No entanto, desde criança tenho interesse grande pela cultura japonesa. Sou faixa preta de judô, estudei o idioma japonês na Escola Shiinomi Gakuen, onde me formei depois de quase 16 anos e continuo aprendendo até hoje com 48 anos de idade. Gosto da música, da cultura, da culinária, do povo, enfim sou um gaijin com coração japonês, mesmo sem nunca ter ido ao Japão, digo sempre emocionado que amo essa terra, meu coração bate naquelas montanhas, sinto-me como se exilado fosse. Sinto-me preso num país distante longe do meu amor e das cerejeiras. Parabéns aos nikkey-jin que construiram a grandeza do Brasil. numagaeru@hotmail.com

  7. ricardo @ 24 Jul, 2009 : 04:26
    e assim ela ta estranha comigo eu queria dexa ela preocupada ou fala um coisa pra ela se abala

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