Conte sua história › Ricardo Miyake › Minha história
Por longos anos de minha vida, fui levado a crer em alguns mitos que assombraram (e ainda assombram) os descendentes nipônicos nas terras tupiniquins. O primeiro deles, como não poderia deixar de ser, é a questão do tamanho do membro. Ele mesmo, o Bráulio, o Bernardo, o Asdrúbal, todos esses sinônimos que a Sociolingüística já estudou, no que diz respeito aos termos considerados obscenos. Os sexólogos, porém, encarregaram-se de colocar abaixo esse preconceito, para a sorte e felicidade de nós, tristes representantes da comunidade nipo-brasileira.
Outro grande mito é o da inteligência. "Garanta sua vaga no vestibular: mate um japonês", lembram-se disso? Quando não havia muitos chineses e coreanos por aqui, esse era o grande lema entre os vestibulandos. Só Deus e eu sabemos o quanto e como sofri por conta desse problema. Meu pai me obrigava a ser o primeiro da classe, senão... E tome ameaças e, desculpem se caio no lugar-comum, mas acho que grande parte de meus traumas vem desse tempo de estudos forçados. Enfim, a gradativa integração da comunidade aos costumes brasileiros e vice-versa, mais a já aludida invasão dos chineses e coreanos derrubaram esse 2º mito e liberaram o meio de campo para os artistas plásticos, videomakers, cineastas, músicos etc. de origem nipônica, sem que precisássemos nos esconder dos parentes e conhecidos.
Agora, o 3º mito, e assunto principal desta crônica, é o seguinte: os chamados relacionamentos inter-raciais. Nunca ouvi de meus pais uma proibição taxativa (embora tenha amigos e amigas que já passaram por essa experiência), mas imagino qual seria a reação deles se eu começasse a sair com uma não-japonesa de qualquer espécie. E aí está o curioso: todos os meus objetos (no bom sentido, por favor) de desejo pertenciam, ou à comunidade alemã, ou à italiana. É de se conjecturar, inclusive, se não foi esse o motivo pelo qual Japão, Alemanha e Itália se juntaram para formar o Eixo, na Segunda Guerra Mundial. Penso que não, mas como explicar a atração, ou melhor, a compulsão que eu sentia pelas garotas do ginásio, colégio e da faculdade que tivessem as referidas ascendências? Creio que foi esse o motivo de minha atração por Márcia, Ângela, Sandra e Mônica, só para ficar nos exemplos mais imediatos. Mas a mais duradoura de todas e, acredito, a de maior peso em minha vida, foi Bettina.
Antes que alguém se lembre de alguma antiga novela da TV, é necessário esclarecer que Bettina foi (ou melhor, é) das poucas boas lembranças que tenho de minha passagem pelo Rio Grande do Sul. Eu a conheci como freqüentadora de um curso que ministrei por lá e, depois, continuamos a nos encontrar nos corredores da Casa de Cultura Mário Quintana e nos bares de Porto Alegre. De acordo com ela, a intelectualidade (entenda-se "artistas") de lá sempre aparecia nos mesmos lugares, daí o encontro inevitável. Nessas ocasiões, trocávamos figurinhas, por assim dizer, exercitando todas as funções de linguagem. Entre as reiterações fáticas e as persuasões conativas (traduzindo: entre os "sabe?" e as cantadas veladas), tínhamos tempo para conversas poéticas. Bettina era uma escritora razoável - ainda que ela própria se achasse ruim - e uma publicitária instigante, embora eu suspeitasse que seu verdadeiro talento estivesse nas ditas artes visuais (sem qualquer malícia). Nós nos encantávamos com nossos próprios umbigos, mas tínhamos consciência dessa egomania dupla. Eu a sentia crescer dentro de mim, sua figura alegre e melancólica, a contradição barroca num perfil árcade, idealizada por um poeta romântico (no caso, eu). E assim nos víamos, ela me apresentava alguns amigos e amigas, mas eu só reconhecia seus cabelos longos e loiros, seus olhos de um verde sem adjetivos e suas pernas quase sempre à mostra, por conta do calor da capital gaúcha. Eu estava me sentindo envolvido por ela, ou por mim, sabe-se lá. Bettina era tudo o que eu desejava, mas a verdade é que não sabia se estava ansiando por uma imagem ou por uma pessoa, ou - o mais certo - eu até soubesse sim, a Bettina de pele clara e lábios finos, de uma delicadeza tão pouco teutônica, talvez minha "Fräulein" (Mário, me perdoe!). Mas o que eu queria era a amante? A mãe? A cúmplice? O que eu esperava de Bettina senão o beijo, o sexo, os cabelos me entrando nos olhos e na boca; o calor e o frio porto-alegrenses, eu só queria a felicidade concretizada e sabia, bem dentro de mim, o quanto isso era ilusório, desejo mesmo, na acepção original da palavra.
Mas foi numa noite, a última (para variar) na cidade que, entre um martíni e outro, Bettina e eu trocamos um beijo, um beijo de literatura, também quente e frio, o aroma do álcool misturado às salivas, poemas trocados em guardanapos. Foi só um beijo, mas longo e sem explicação como são os melhores, uma troca, a compreensão de nossas igualdades e diferenças, de nossa humanidade tão pequena. Em volta, pessoas nos olhavam, espantadas. Dependendo do lugar, japoneses e alemãs ainda não se juntam com tanta freqüência.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil