Conte sua história › Sílvia Mitie Kaneco › Minha história
Meus avós paternos são da Província de Gifu, conheceram-se e casaram-se no Japão. Contrariando o costume que vigorava na época, o casamento deles não foi arranjado. Gosto de acreditar que se casaram por amor. Meu avô com certeza destacava-se pela beleza e pelo porte atlético e não é difícil imaginar por que minha avó teria se apaixonado por ele. Eu não conheci meu avô, pois quando eu nasci ele já havia falecido.
Meus avós chegaram ao Brasil por volta de 1930 e se estabeleceram na região de Presidente Prudente, em um pequeno município chamado Indiana (na hoje extinta Macuco). Arrendaram um pedaço de terra e começaram a cultivar algodão. Como a de muitos imigrantes, a vida daquela família não era fácil. Moravam em uma casa de sapé, e minha avó, Hori Kaneco, todos os dias, antes do raiar do sol, já estava trabalhando. Ela era pequena e muito magra; porém essa aparente fragilidade escondia uma mulher muito forte, que era o verdadeiro pilar daquela família.
Tiveram quatro filhos, três mulheres e um homem, o meu pai, Tatsuo. Como o único filho homem, teve o privilégio de estudar e a obrigação de ganhar a vida. Aos 12 anos, saiu de casa para morar com os padrinhos portugueses a fim de ter melhor acesso à educação.
Meu pai mudou-se para São Paulo, onde morou em um albergue na Liberdade. Formou-se em Economia, deixando para trás o sonho de ser arquiteto. Já casado com minha mãe, acumulou dois empregos, deixando-lhe pouco tempo para estar com os filhos. Esse ritmo rendeu-lhe uma crise de estafa, o que o ensinou a valorizar também o tempo de lazer. Nossa família passou, então, a viajar todos os anos, durante a tão esperada época de férias, quando podíamos desfrutar daquele momento de estarmos todos juntos.
Das muitas lembranças que tenho da minha infância, uma, em especial, eu trago dentro de mim como um tesouro. É a minha primeira lembrança, como se isso marcasse o despertar da minha própria consciência. E o curioso é que essa primeira lembrança não é da minha mãe, nem do meu pai, nem dos meus irmãos, mas da minha avó. A sensação, mais do que a imagem, que ficou gravada em mim, é dela me contando histórias para dormir. Eram duas histórias, a do Momotaro-san e a do Doobutsuen, que era a minha preferida.
À medida que fui crescendo, outras lembranças da minha avó foram se acumulando. Muitas são engraçadas, como quando ela torcia, gritava e até batia palmas pelo Palmeiras sem saber que se tratava de um jogo reprisado, de muitos anos atrás. Ou de quando ela vinha me chamar porque havia começado uma confusão no meio da partida e os jogadores estavam brigando. Ela adorava quando isso acontecia! Lembro-me particularmente da Copa de 82. Era inverno, fizemos pipoca e juntamo-nos todos na sala (não tenho certeza, mas creio que foi uma das raras vezes em que até acendemos a lareira). Como todos sabem, o Brasil perdeu, e aquele último jogo foi uma grande tristeza. Lembro que até eu chorei e ela também.
Além de futebol, ela também gostava de vôlei e basquete. Mas, acho que gostava mesmo era de uma boa briga. Lembro-me das madrugadas que ela passava acordada esperando as lutas do Mike Tyson. De manhã ela vinha contar que a luta não havia durando nem um minuto. Nocaute de novo!
Outra lembrança engraçada é de quando eu entrava no quarto dela e, de repente, notava tudo fora do lugar. A escrivaninha, a cama, o sofá .... De tempos em tempos, ela mudava tudo, sem pedir ajuda a ninguém. Costumava fazer isso também com os vasos, grandes e pesados. Se contasse ninguém acreditava.
Minha avó tinha também um lado artístico. Escrevia haikus, que eram publicados nos jornais da colônia no Brasil. Alguns chegaram a ser publicados n0 Japão e ganharam prêmios.
Também não gostava de ficar parada e depender dos outros. Fazia questão de lavar a louça e sua própria roupa. Hoje compreendo como essas coisas eram importantes para ela, uma pessoa que havia trabalhado tanto quando jovem e que sabia a importância de ser útil.
Minha avó faleceu este ano (2007). No hospital, já muito debilitada, escreveu seu último poema, de extrema beleza e lucidez, que foi a forma que encontrou para se despedir. Seu enterro representou o fim de uma geração, pois todos os meus oditchans e obátchans se foram.
Meus avós maternos são de Hyogo-ken e faziam questão de manter muitos costumes, como ouvir missas budistas e fazer oferendas aos mortos no hotoke-san. Todos os anos, eu aguardava com ansiedade as festividades do Kodomo-no-hi, quando meu avô hasteava três bandeiras representando carpas coloridas, e o Ano Novo, que comemorávamos da forma tradicional, fazendo moti no pilão de madeira.
Minha filha, Sophia, nasceu em 2005. A ela pretendo apresentar a cultura japonesa de forma natural e contar a saga de seus antepassados imigrantes, para que ela cresça consciente de suas origens e mantenha viva a memória de meus avós.
Aos meus irmãos e a todos os meus primos e primas que, certamente, também guardam muitas lembranças da nossa obátchan, eu transcrevo abaixo um trecho de um poema da professora da minha filha Sophia, chamado "Poema da Eternidade":
“Acima de tudo,
Não queiras imortalizar tua passagem,
Deixa que ela se dilua,
Nas pequenas coisas da vida como um olhar, um sorriso, um afago.
Que tua passagem possa ser apagada rapidamente,
Como se apagam as marcas na areia,
Pois o que ficarás de ti,
Já ficou impresso nas almas
dos que te cercavam.
E esses levarão a outrem
O que deixaste impregnado.
O mesmo sorriso, o gesto de amor e atenção,
O afago.
E essa marca de amor, que se conduz pelas pessoas,
É a tua eternidade.”
(Cecília Bonna)
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil