Conte sua história › Cesídio Ambrogi Filho › Minha história
Meu convívio com nipo-brasileiros ocorreu no alojamento para estudantes da antiga Faculdade Nacional de Medicina, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. O alojamento comportava cerca de 26 estudantes vindos de todo o Brasil e era dirigido por nós mesmos, inclusive quanto aos critérios de seleção dos mais pobres.
No grupo havia cinco nikkeis e fui observando que o comportamento deles era um tanto diferente dos demais. Nunca reclamavam dos cursos, dos professores, das notas, nem do alojamento ou dos colegas. E eram sempre bons alunos. No alojamento eram discretos, ordeiros, silenciosos e cooperativos.
Acabei ficando amigo de um deles, Nilo Guenka, do Mato Grosso. A partir daí, cresceu a minha curiosidade sobre o "misterioso" comportamento dos nikkeis. Sempre havia ordem nos seus quartos. Não se envolviam com a momentosa "esquerda festiva" universitária: a faculdade e nosso alojamento foram invadidos por forças militares nos anos 60. Eu mesmo, na ocasião, tive que passar por um "corredor polonês" para chegar às ruas.
Mesmo fora das esquerdas, nossos colegas japoneses eram respeitados e não eram vistos como reacionários. Pareciam neutros ou indiferentes. Mas mostravam-se amigos sinceros, não emotivos, do tipo com os quais o que se combinava deveria ser cumprido. Percebi que a amizade com eles era uma relação que seguia certas regras, uma coisa nova para mim. Outra coisa me chamava a atenção. Os nikkeis eram 19% da população do alojamento, mas nem de longe 19% da população do Brasil. Como entender? Uns eram brancos e quase sem pêlos. Outros, morenos e bem mais peludos. Guenka, adiante, me explicou que eram originários de ilhas diferentes.
No longo convívio com Nilo Guenka, raras vezes o vi gargalhar, embora fosse alegre e ágil. Ele me impressionava pela sua maneira lógica de pensar. Naquela época, era comum nós estudantes trabalharmos em hospitais na Baixada Fluminense. Lá, numa maternidade, Guenka observou que nasciam mais crianças mal formadas das gestantes que faziam seu pré-natal com determinado médico. Ele analisou os prontuários e notou que este médico era o único que usava um determinado remédio contra vômitos (não a talidomida). Repeti a mesma observação nos berçários que tive acesso. Parecia provável. Entretanto, afora a nossa troca de idéias, não nos sentimos estimulados a fazer uma comunicação. Na Universidade, não fomos educados a pensar em termos probabilísticos, duvidar ou investigar sobre o que estava estabelecido. E a idéia de um código de defesa do consumidor não havia nascido. Assim, calamos o bico e evitamos usar o remédio que, enfim, saiu do mercado silenciosamente.
Aprendi fotografia com um colega nordestino e trabalhava no Diretório Acadêmico fazendo 3x4. Mas foi com Nilo Guenka que pratiquei fotografia experimental. Com o tempo, concluímos que não tínhamos talento para a arte. Nas folgas, na Praia Vermelha, eu e ele éramos praticantes autodidatas de pesca submarina. Partilhávamos uma máscara, um snorkel e um par de pés-de-pato. Pescávamos com um arpão improvisado, lançado por elástico de garrote médico e comíamos nossos peixes com a sensação de triunfo. Nilo Guenka, mais tarde, morreu afogado tentando salvar sua namorada do afogamento. Perdi um amigo que seria para sempre.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil