Depois da discussão do otaku no texto que fiz sobre a MTV, resolvi colocar aqui este texto que escrevi anos atrás para a revista Herói. Esse é um dos compridos... gomen!
“Seu otaku!!”
Por Renato Siqueira
O que será que os fãs de anime têm que geram tanta discussão, debates, livros, novelas e preconceito? Afinal, quem são os otaku?
São oito da manhã. Domingo. Ele acorda cedo, ao contrário de todos os outros da casa. Enfia um monte de coisas na sua enorme mochila estampada com o carismático Keroro Gunsou, febre total entre a turma, dá uns telefonemas e combina de se encontrar com os amigos na estação de
Akihabara, o bairro eletrônico de Tóquio. Mas não sem antes deixar o vídeo gravando os animes do dia, salvar a fase atual do jogo Super Robot Wars, que levou quase a madrugada inteira para conseguir chegar, prender à bolsa alguns penduricalhos das meninas mais fofinhas dos desenhos da temporada, preparar o MP3 player com os últimos sucessos das anime songs e pegar da prateleira um mangá ou livro de tokusatsu para ler na viagem.
A pessoa descrita acima é um otaku típico do Japão. Se essa mesma pessoa vivesse no Brasil, no mesmo domingo ensolarado, ela iria ao bairro da
Liberdade, em São Paulo, para encontrar os amigos, conversar sobre os eventos temáticos, falar dos últimos animes que baixou na net, comprar acessórios que deixem claro seu gosto pelos personagens de olhos grandes e curtir uma pratada de yakisoba comprada na feirinha que rola no final de semana. Falando palavras soltas em japonês, como “kawaii”, “sugoi”, “arigatô”, que já incorporou ao seu próprio vocabulário, pediria a opinião dos amigos sobre o próximo cosplay que está planejando fazer.
Talvez essa seja uma definição generalizada demais sobre os otakus, fenômeno comportamental cada vez maior no mundo todo. O nível de devoção aos desenhos, quadrinhos e modismos do Japão varia de pessoa para pessoa, mas não se pode negar que eles existem e são muitos.
O otaku no Japão
A palavra otaku em japonês significa, originalmente, casa, mas é um termo impessoal, super polido e cerimonioso para se referir a morada de alguém. Ela foi usada no Japão pela primeira vez em 1983, por um jovem pesquisador chamado
Akio Nakamori para designar um fenômeno que atingia a juventude japonesa, destacando o distanciamento do jovem de lá da sociedade em que vivem. Ou seja, aquele cara não adaptado ao meio social, que prefere ficar em casa curtindo seus videogames, desenhos animados, mangás, brinquedos e outros cacarecos.
Para explicar este isolamento social temos que voltar no tempo. No final da Segunda Guerra Mundial (em 1945), a economia japonesa estava destruída e a reconstrução do país precisava ser feita imediatamente. Para que isso acontecesse o povo teria que se unir completamente, deixando de lado sua individualidade para trabalhar incessantemente pelo coletivo. E foi isso que aconteceu. Com um pouco mais de 50 anos, o Japão passou de um país de famintos para uma grande potência mundial.
A geração de jovens criados após 1965 é a primeira que não precisa preocupar-se com as seqüelas deixadas pela guerra. Assim, para estas crianças, a palavra restrição não tem mais nenhum significado. Os otaku cresceram nesta época de prosperidade econômica, de descoberta do consumismo, onde tudo pode ser comprado. No entanto, sobrou nesta nova geração a mesma apologia ao esforço individual pelo bem coletivo que faz com que uma pessoa seja obrigada a abrir mão de seus sonhos para fazer aquilo que a sociedade quer que ela faça. Assim, abafados pelo meio social, os jovens escapam para o mundo virtual e são bons candidatos a virarem otakus, pessoas que preferem “ficar em casa” a sair e encarar a realidade de frente.
Essas pessoas refugiam-se em um mundo de fantasia superalimentado constantemente por imagens propostas pelas mídias modernas. Os otaku são uma resposta inconsciente dos jovens japoneses à um mal estar generalizado causado pela própria sociedade japonesa, que não dá uma chance para eles extravasarem seus sonhos de juventude. Pelo menos, no mundo virtual eles são os heróis e podem fazer o que quiserem sem serem reprovados por ninguém.
Os otakus podem ser considerados a primeira geração multimídia consumindo de forma voraz todas as novas tecnologias. Computadores novinhos, celulares de última geração e videogames caríssimos fazem parte desse cardápio. Para exemplificar, basta dizer que, no Japão, 99,2% das casas tem televisão, sendo que 5,1 % dos meninos com menos de 12 anos, 12% com menos de 15 anos e 30% com menos de 18 anos possuem seu próprio aparelho dentro do quarto.
Preconceito
Quando andava com uma amiga japonesa dentro de uma convenção de animes fui cutucado por ela em certo momento e ouvi: “você sabe que aqui só tem otaku, né?”. E eu respondi: “sim, qual o problema?”. Ela me disse: “eles são kimoi, eu tenho medo deles”. Kimoi é uma palavra japonesa que significa literalmente “nojento”. Com essa preocupação da minha amiga eu resolvi que queria saber o motivo dessa repulsa dos japoneses pelo conceito otaku. E eis que descobri a origem do problema:
Em 1989, um jovem serial killer chamado
Tsutomu Miyazaki foi preso pela polícia. Ele havia esquartejado quatro estudantes japonesas com requintes de crueldade. Em sua casa foi encontrada uma coleção imensa de animes do gênero hentai (com conteúdo sexual). Por isso, ele foi chamado pela mídia japonesa de
“o assassino otaku”. Foi esse termo que condenou os outros fãs hardcore da indústria jovem japonesa a uma vida reclusa. Pessoas que apenas curtiam seus hobbies foram associadas ao terrível assassino e passaram a ser ainda mais discriminadas pela sociedade.
O Homem do Trem limpa a barra dos otaku
No entanto, atualmente, a mentalidade da sociedade japonesa vem mudando em relação a isso. Nada ajudou mais a limpar a barra dessa galera do que a exibição entre julho e setembro de 2005 de
Densha Otoko (O Homem do Trem), uma novela que mostra as desventuras de um otaku típico na tentativa de conquistar uma garota do “mundo real” que conheceu enquanto tentava ajudá-la a se livrar de um bêbado chato dentro de um vagão de trem. Tímido e desarticulado, o pobre Densha faz uso da internet para pedir conselhos amorosos e, assim, ganhar o coração da garota. A história é real e foi retirada de um fórum japonês chamado 2Channel. Transformado em romance, virou filme e depois essa novela, que marcou mais de 30 pontos na audiência.
A exibição de
Densha Otoko fez com que os otaku passassem a aparecer mais na mídia japonesa, já que a novela mostrava os fãs de anime como pessoas honestas e cooperativas. Por isso, o mercado faminto por novidades do Japão já está aproveitando o gancho para criar muitos produtos relacionados a eles. Esse novo fenômeno está sendo chamado de
Moe Sangyou ("Indústria do Moe").
Moe é uma gíria usada pelos otaku para se referirem a alguma coisa ou alguém que eles gostem e desejem. Seria a versão espada do “kawaii”, que as meninas gritam para dizer que alguma coisa é “fofinha”.
Kaichiro Morikawa, autor do livro Learning From Akihabara: The Birth of a Personapolis, tem uma explicação bacana: "imagine o sentimento de quando você começa a gostar de uma pessoa pela primeira vez. A paixão toma conta do seu corpo, da sua mente e do seu coração. Isso não tem lógica, é inexplicável. O “moe” é a palavra que explica um momento similar a este". Piscou?
Otaku no Brasil
O otaku brasileiro é um reflexo de tudo o que você acabou de ler. É lógico que nós não passamos por todos os problemas que os japoneses tiveram que enfrentar. Os brasileiros foram seduzidos por um estilo de entretenimento que hoje domina o mercado ocidental. Sabendo que 40% de tudo que é publicado no Japão são quadrinhos e que mais de 60 novas séries de animação são lançadas por ano, não sobraria dúvida de que algo logo seria exportado para o Brasil.
Desde a década de 1980, muitos desenhos japoneses vieram para o nosso país, mas foram os grandes sucessos dos últimos dez anos como
Cavaleiros do Zodíaco,
Dragon Ball Z e
Pokémon que, acompanhados da evolução rápida dos computadores e dos meios de comunicação como a internet, resultaram na facilidade do contato dos fãs com esse tipo de material. Hoje, qualquer fã com um computador plugado à rede pode ter acesso há centenas de títulos em segundos, durante uma pesquisa em um site de busca.
De qualquer maneira, os otaku no Japão tiveram uma história que previu o futuro. Basta reparar que hoje você não precisa sair de casa para encontrar os amigos, pagar contas, fazer compras... Seguimos por um caminho onde logo nos depararemos com um mundo que nos dará a opção de viver filtrado pelo virtual, sem sermos incomodados por ninguém.
O objetos de adoração dos Otaku
Confira uma lista daquilo que os otakus, tanto aqui como no Japão, adoram
Anime: hoje em dia muitos desenhos animados japoneses são lançados no Brasil, mas o número não chega nem perto das mais de 60 séries que são surgem no Japão todos os anos.
Mangá: no Brasil já foram publicadas mais 50 histórias em quadrinhos e a tiragem mensal total é de, em média, quinhentos mil exemplares. No Japão, uma revista semanal vende cerca de quatro milhões de exemplares.
Cosplay: os fãs que se vestem de seus personagens preferidos são mania no Japão e no Brasil. Por aqui, o hábito de vestir-se começou na década de 1980, mas só estourou para valer mesmo em 2000.
Videogames: hobbie eterno dos otaku. O videogame transporta o jogador para um mundo onde ele dita as regras.
Garage Kit : as estátuas de resina que precisam ser montadas e pintadas cuidadosamente pelos fãs são mania no Japão. Por aqui elas também existem, mas são consumidas numa escala infinitamente menor.
Maid Café: são cafeterias no bairro de Akihabara onde garçonetes vestidas de empregadas atendem de forma cordial e subserviente um otaku babão, que geralmente vai para tomar um sorvete e ser chamado de “goshujin-sama” (mestre). É uma forma ótima de combater a timidez e falar com alguém. Ainda não apareceu por aqui, mas a idéia desse estilo de restaurante já está sendo exportada para países como Coréia do Sul e China.
J-Drama: as novelas japonesas se tornaram mania há pouco tempo e fazem mais sucesso entre os otaku ocidentais do que os orientais. Falam de temas muito diferentes que vão de histórias felizes a uma aleijada a beira da morte ou os próprios otakus.
Aidoru: mania japonesa que vem da palavra inglesa idol (ídolo). O idol system é um sistema que gera uma série de atraentes e jovens estrelas (atrizes, cantoras, modelos, etc.) por ano, fazendo com que as pessoas na mídia sejam cada vez mais descartáveis. Mesmo assim, uma idol é um prato cheio para os Kamera Kozo, um tipo diferente de Otaku tarado por Idol que compra uma câmera super moderna e faz zilhões de cliques de sua Aidoru favorita. Quase sempre perseguindo a garota onde quer que ela esteja.
J-Pop: música popular japonesa que já faz bastante sucesso também no Brasil. Bandas com Larc’ En Ciel, Gackt, Asian Kung Fu Generation. Jam Project e muitos outras tem seu lugar na coleção de CDs dos fãs. Ouvir aquela trilha toda vez que se assiste a abertura ou encerramento de um anime faz a gente querer comprar o CD ou baixar a música num dos diversos meios oferecidos pela internet.
Fansubber: ter um computador com internet hoje é o suficiente para estar em contato com a programação completa de animes do Japão. Os fansubber são grupos de fãs que legendam os desenhos japoneses e os disponibilizam na rede mundial de computadores. É assim que muitas séries japonesas acabam se tornando sucesso mesmo sem estarem disponíveis oficialmente mundo a fora.
Manga Scanlation: versão alternativa dos Fansubber. O manga scanlation são mangás escaneados e traduzidos por fãs que os disponibiliza na internet, onde podem ser baixados de graça. Tanto essa prática, quanto a dos fansubbers são ilegais porque ferem os direitos autorais das respectivas obras, mas são tão comuns para os fãs quanto falar “sugoi!” (“uau!”), ao ver as últimas atualizações desses sites.
Texto publicado em uma edição especial da Revista Herói no ano de 2006