Reportagens › A Starbucks japonesa
Autor: Luciene Antunes
Com reportagem de Thiago Minami, de Tóquio
O empreendedor Hiromichi Toriba fugiu de casa, trabalhou como garçom em Tóquio e, depois de um estágio no Brasil, criou do nada uma gigantesca rede de cafeterias
No final do anos 50, o representante comercial Hiromichi Toriba, da Suzuki Coffee, importadora japonesa de café, recebeu do chefe a incumbência de conhecer de perto o mercado que era o maior produtor do grão. Assim, o jovem de 20 anos, que nunca havia saído de seu país, desembarcou sozinho no Brasil para dar conta da tarefa. Ficou por aqui mais de dois anos, a maior parte deles em São Paulo. Entre outras coisas, Toriba trabalhou numa fazenda e realizou negócios na Bolsa do Café, em Santos, no litoral do estado. Foi um período marcante o suficiente para que Toriba resolvesse homenagear o Brasil ao montar seu primeiro negócio próprio, já na década de 60. Batizou a empresa de Doutor Coffee (assim mesmo, com o primeiro nome em português), uma referência à rua Doutor Pinto Ferraz, no bairro paulistano de Vila Mariana, onde ele morou durante seu estágio no país. A empresa deu origem àquela que é hoje a maior rede de cafeterias do Japão. “No Brasil, realizei estudos intensivos sobre seleção de grãos, misturas e torrefação”, diz Toriba, num trecho de sua autobiografia publicada em 1999, Omoukotoga Omouyouninaru Doryoku (“Como o esforço de trabalho pode tornar seus sonhos reais”, numa tradução livre).
A Doutor Coffee começou atuando no ramo de importação e venda de café no atacado. Na década de 70, depois de visitar a Europa e conhecer de perto algumas cafeterias da França, da Alemanha e da Suíça, Toriba resolveu copiar o modelo no Japão, entrando para o ramo de varejo. A primeira loja Doutor Coffee abriu suas portas em 1980, em Tóquio. Desde o início, o fundador adotou o modelo de fast food. O negócio tinha poucos funcionários, os clientes podiam se servir no balcão em menos de 10 minutos e o cardápio, apesar de reduzido, oferecia outros itens, como lanches e sucos. O carro-chefe desde então eram as xícaras de café, vendidas ali por um preço equivalente a 1,50 dólar, numa época em que o mesmo produto chegava a custar quase sete vezes mais em restaurantes da cidade. Com o charme da novidade e um preço imbatível, a Doutor Coffee tornou-se um sucesso no Japão.
A expansão do negócio foi vertiginosa e a rede domina o mercado até hoje. Atualmente, tem 1 500 lojas no Japão, mais que o dobro de sua concorrente mais forte, a cadeia americana Starbucks, que chegou ao país em meados dos anos 90. Segundo cálculos de Toriba, a Doutor Coffee vende atualmente uma média de 400 xícaras de café por minuto. No ano fiscal de 2007, encerrado em março, a companhia fechou o balanço com faturamento de cerca de 600 milhões de dólares, 7% mais do que no ano anterior. Para atender diferentes tipos de público, a rede reúne seis marcas de lojas. A mais sofisticada foi batizada de Le Café Doutor e fica em Ginza, bairro de Tóquio com um dos metros quadrados mais caros do mundo e que concentra as grandes grifes internacionais de moda. “Além de se manter no topo durante todo esse tempo, a Doutor Coffee conseguiu a façanha de crescer ininterruptamente em seus 46 anos de existência”, afirma Taneo Moriyama, da empresa Insight Inc., uma das consultorias mais respeitadas do Japão nas áreas de alimentos, varejo e agronegócio.
Embora sua trajetória seja pouco conhecida no exterior, Toriba é hoje um dos empresários mais admirados pelos japoneses, um povo que costuma demonstrar especial apreço por empreendedores que começaram do nada. Quando adolescente, após uma briga com o pai, Toriba fugiu de casa, na cidade de Saitama, na região metropolitana de Tóquio. O tema da discussão era a divisão do dinheiro do trabalho da família, que vendia peças para brinquedos. Em sua autobiografia, Toriba narra que, no auge do bate-boca, o pai chegou a ameaçá-lo com uma espada de samurai. (Hoje, quando toca no assunto, o empresário procura amenizar o episódio, dizendo que o pai perdeu a cabeça, mas não tinha a real intenção de feri-lo.) Ao sair da casa dos pais, Toriba abandonou os estudos e se mudou para Tóquio, onde começou a ganhar a vida trabalhando como garçom.
Dois anos depois de uma dura rotina servindo clientes num restaurante da capital japonesa, o fundador da Doutor Coffee recebeu um convite para ingressar no quadro de vendedores de uma empresa que comercializava café. Apesar das dificuldades com a timidez — Toriba conta que ficava com o rosto vermelho e perdia a fala sempre que era apresentado a um desconhecido —, o instinto de sobrevivência falou mais alto. Pouco tempo após chegar à empresa, Toriba já era o melhor vendedor da companhia. Sua capacidade logo chamou a atenção da concorrência e ele acabou seduzido por uma proposta de trabalho da Suzuki Coffee, empresa que o despachou para o Brasil no final dos anos 50.
Nas mais de quatro décadas de liderança folgada da Doutor Coffee no mercado japonês, o único concorrente que provocou algum incômodo foi a rede americana Starbucks. A multinacional chegou ao Japão na segunda metade dos anos 90 e cresceu rapidamente no país, mirando num público mais jovem e com maior poder aquisitivo que a média de clientes da Doutor Coffee. A reação de Toriba foi imediata. “Ele diversificou ainda mais o perfil de suas lojas, lançando marcas como a Excelsior Caffé, mais sofisticada e especializada em café expresso, e a Salon de Thé Madaleine, uma casa de chá voltada para mulheres. Além de conter a expansão dos americanos no país, essas idéias têm gerado bom retorno até agora”, afirma o consultor Moriyama. Na época do lançamento da Excelsior, a Starbucks entrou na Justiça contra Toriba, alegando que ele havia copiado seu logotipo e o design das lojas. O processo não prosperou.
Casado e pai de dois filhos, Toriba manteve-se à frente da Doutor Coffee até 2006, quando passou a presidência da rede para seu primogênito, Yutaka Toriba, de 44 anos. Apesar de estar oficialmente fora do dia-a-dia da operação, o fundador ainda ocupa o cargo de presidente honorário da companhia e é o maior acionista da holding que hoje controla a empresa. Como ocorre com a maioria dos homens de negócios mais importantes do Japão, pouco se sabe sobre a vida pessoal de Toriba. Ele mora com a mulher em Tóquio e segue a linha budista Soka Gakkai. Segundo essa escola filosófica, a educação é a forma mais adequada de forjar o caráter das pessoas e levar o país à prosperidade. Toriba também é muito requisitado para dar palestras a estudantes, incentivando o espírito empreendedor dos jovens.
As ligações entre o empresário e o Brasil continuam fortes até hoje. Depois do período em que viveu no país, ele já voltou para cá diversas vezes. Assim como as maiores torrefações do mundo, a empresa de Toriba mantém o Brasil como seu principal fornecedor. “A Doutor Coffee é um dos nossos maiores clientes e compra mensalmente. O senhor Toriba exige os melhores grãos, produzidos exclusivamente no cerrado mineiro, no sul de Minas e na região mogiana do estado de São Paulo”, diz Carlos Santana, representante da trading Ecom, uma das principais fornecedoras de grãos à rede japonesa. Cerca de um terço da matéria-prima utilizada pela Doutor Coffee vem do Brasil. O restante dos grãos é importado de outros países e de fazendas próprias que a empresa mantém no Havaí.
Os fortes laços entre o Brasil e a Doutor Coffee serão reforçados neste ano. A empresa fez uma encomenda especial para comemorar o centenário da imigração japonesa no Brasil. Tratase de um blending genuinamente brasileiro, 100% produzido em uma fazenda de um descendente japonês no sul de Minas, que será lançado nos próximos meses nas lojas da Doutor Coffee no Japão. No início de junho, o atual presidente da companhia, Yutaka Toriba, estará no Brasil para provar os primeiros lotes da encomenda e realizar uma série de visitas a fazendas e reuniões com alguns fornecedores. É a forma simpática que a empresa encontrou de homenagear o lugar que mudou para sempre a vida do fundador da Doutor Coffee.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil