Reportagens › A poesia do abstrato
Veja, 21/10/1970
DA REDAÇÃO
Na maioria, são telas grandes, de 3 metros por quatro. Tôdas lembram paisagens abstratas: minerais negros envoltos por véus de vermelhos sinuosos como uma névoa fantástica. A côr é o movimento em estado puro: os quadros de Tikashi Fukushima como que captam uma coreografia espacial complexa. Num campo ocre, formas indefinidas verdes, vermelhas, negras, esvoaçam numa dança imaterial. Massas pastosas, que lembram tintas escorrendo, confluem e se separam, de forma rítmica e musical. Noutra tela, travam-se batalhas aéreas, núcleos de côr chocam-se dramàticamente em meio a nuvens volumosas, sopradas pelo vento e tocadas pelo poente. Mesmo os movimentos violentos, de côres em fuga, são sempre contidos por uma atmosfera profundamente poética e elegante. Mas o pintor nascido na cidade de Fukushima, no Japão, há 50 anos, e naturalizado brasileiro desde os 43, prefere esconder-se atrás de suas invenções cromáticas. Não está na Galeria Documenta, São Paulo, onde expõe desde a semana passada telas de valor variável entre Cr$ 2 000,00 e Cr$ 8 500,00. E é difícil encontrar Fukushima até mesmo - em sua casa no bairro distante de Cidade Adhemar, onde uma miniatura de jardim japonês, em degraus de terra ajardinados, lembra a simbologia oriental da água, da pedra, da vegetação.
Nipo-brasileiro - Vindo para o Brasil, a chamado de um tio, Fukushima passou de desenhista de uma fábrica de aviões japonêsa, em 1938, a carregador de sacos de arroz numa colônia nipônica em Pompéia e Lins, no interior de São Paulo. Depois, impossibilitado de viver da sua arte, êle descobriu que poderia ganhar o suficiente fazendo molduras para quadros dos outros até que seu nome se impusesse. Fukushima tem vários pontos de contato com seus amigos inseparáveis Mabe, Nomura e Wakabayashi, com os quais joga cartas e complicados dominós orientais aos domingos. Como êles, não pensa em deixar o Brasil: só em Tóquio teria que enfrentar a concorrência de 10 000 artistas na zona metropolitana. E, como êles, prefere que interpretem sua criação a falar sôbre ela. Mas, ao contrário da dramaticidade de Mabe ou a melancolia trágica de Wakabayashi ou a inovação técnica de Bin Kondo, sua pintura é afirmativa: de todos os choques resulta uma síntese harmoniosa, como a da sua própria vida até radicar-se no Brasil. Seus quadros estão em todos os museus de arte moderna brasileiros e entraram em nove das dez bienais de São Paulo; paradoxalmente, porém, seu nome é muito mais conhecido no estrangeiro do que no Brasil. Representando, com três outros artistas, o Brasil na VI Bienal de Tóquio, em 1961, incluído na selecionada coleção do museu Guggenheim, de Nova York, o destaque que mereceu na antologia artística "The Emergent Decade of Latin America", publicada nos Estados Unidos há dois anos, abriu-lhe as portas dos grandes colecionadores americanos. Em março de 1971, a Pan American Union, de Washington, vai dedicar-lhe uma exposição individual, que ressaltará o prestígio de seu nome fora das fronteiras do Brasil, o país onde escolheu viver.
Marca dos trópicos - Com um sorriso bonachão, tirando baforadas do cachimbo, rindo inesperadamente quando não quer responder diretamente a uma pergunta, Fukushima - seu nome todo significa literalmente "perto da ilha da Felicidade" - não acredita em autopromoção. Cria seus quadros num ambiente isolado, pacato, de contemplação oriental da natureza. Das paisagens nevadas, dos jardins geométricos do Japão, a passagem para uma natureza violenta como a dos trópicos marcou seu itinerário. Inicialmente, Fukushima impressiona-se com um veio num mineral, uma estria numa madeira ou um raio de sol que cai obliquamente por uma fresta. É o ponto inicial da sua pintura: debruçado sôbre a tela disposta no chão, êle empunha a espátula com cortes incisivos como os de um cirurgião e "cose" visões sugeridas a partir daquele núcleo central. Da "action-painting" de um Jackson Pollok só tem uma semelhança de métodos. Em vez de jogar as tintas numa disposição acidental, êle constrói cada parcela da tela, não deixando nada ao acaso. Casado com uma conterrânea de nome Ai (que em japonês significa "amor"), e com dois filhos jovens, a todos que querem visitar seu atelier Fukushima estende imediatamente um cartão minúsculo. Contém um míni-mapa de como chegar ao descampado onde fica sua casa, construída duramente, quase pedra por pedra. É um itinerário útil decorada com ex-votos do nordeste, tapêtes de couro do Rio Grande e balões orientais utilizados como abajures, sua casa fica num bairro distante, entre o rural e o urbano, inacessível a quem não tiver o roteiro. Como uma recordação do Japão - onde as ruas não têm números e cada visitante entrega ao chofer de táxi um mapa de como chegar a sua residência -, é a única que ficou, fora de seu sotaque e sua timidez cortês tipicamente nipônica. De uma viagem recente ao seu país natal, Fukushima voltou correndo, assustado com o excesso de técnica e poluição da atmosfera: gosta mais do Brasil, cujos poentes, ventos, nuvens e vegetação lhe sugerem paisagens, traduzidas no lirismo das formas na dramaticidade emotiva das côres.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil