Reportagens › Os chefes perderam a condução
RUBENY GOULART, de Caxias do Sul
Na Marcopolo, o frango com polenta foi substituído pelo sushi e são os empregados que decidem como se deve construir as carrocerias
Toda vez que ouvia falar dos métodos japoneses de administração e das maravilhas do sistema de gerência participativa, o empresário Paulo Bellini, de 63 anos, presidente da Marcopolo, maior fabricante de carrocerias de ônibus do Brasil, torcia o nariz. Para ele, parecia mais que impossível transplantar para Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul; onde está baseada a Marcopolo, uma cidade com forte influência italiana, a experiência que deu certo em Tóquio e Osaka. Definitivamente, pensava no frango com polenta não combinava com o sushi. Em fins de 1986, porém, Bellini fez uma viagem que mexeu com a sua cabeça e, por extensão, com a empresa que preside. A convite de um amigo, visitou juntamente com o diretor industrial da Marcopolo, Cláudio Gomes, durante duas semanas, onze fábricas em várias cidades japonesas. O que ele viu por lá serviria para humilhar qualquer empresa. Até a Marcopolo, que sempre se julgara moderna, eficiente e em..uta. Bellini, mais humilde, voltou conver...do ao modelo oriental, que tratou de implantar em sua fábrica. Quatro anos depois os resultados são para Akio Morita nenhum botar defeito: a rotatividade de pessoal caiu de 35% para 11%, a produtividade deu um salto de quase 40% e o faturamento mais do que dobrou, chegando a 110 milhões de dólares em 1989. As mudanças começaram em março de 1987, quatro meses depois da viagem de Bellini e Gomes. Mudou, por exemplo, a relação entre as chefias e seus subalternos, que se sustenta no respeito à hierarquia. Na Marcopolo, ao contrário, chefes são espécimes cada vez mais raros. Eles praticamente perderam sua função na fabrica, onde os próprios operários é que decidem sobre suas tarefas.
"O que aconteceu aqui foi uma radical visão de conceitos", diz Bellini, o engenheiro que fundou a empresa, em 1949, descendente de italianos, amante de uma partida de tênis com os amigos nas horas vagas. "Naquela época ainda se fabricavam carrocerias de ônibus com estrutura de madeira." Tal revisão colocou abaixo alguns dogmas caros ao modelo taylorista de administração - segundo o qual o operário não serve para pensar, apenas para trabalhar. Na Marcopolo ele pensa e nem por isso constitui ameaça à produção ou ao que realmente interessa para a empresa, o lucro. Ao contrário, com mais liberdade de ação e novos canais de comunicação com a cúpula, o que se verificou é que o empregado, principalmente o da fábrica, tem idéias - e boas idéias. Só nos últimos dois anos, os 150 grupos de Simps, sigla do Sistema Marcopolo de Participação Solidária, fizeram quase 3 000 sugestões de mudanças nos processos de produção. Nesse modelo, em que a liberdade de iniciativa não é só do patrão mas também do empregado, foram aproveitadas idéias que propunham desde a criação de um armário de ferramentas até a montagem de uma nova máquina para fabricar peças utilizadas na feitura de ônibus
Praças na fábrica - Aos poucos, outras mudanças foram introduzidas. Uma delas, que praticamente aboliu os controles na fábrica e a necessidade de distribuir tarefas, é o processo contínuo de reposição de estoque, baseado na simplicidade do kanban japonês. Outra idéia foi a das "células de produção". Inteiramente implantadas, as células permitiram a descentralização de várias operações, criando na linha de produção pequenas unidades fabris independentes. Nas fábricas da Marcopolo -localizadas em Caxias do Sul, uma próxima ao centro e a outra no bairro de Ana Rech, na periferia da cidade - difundiu-se a idéia, tirada dos japoneses, de que a empresa é uma espécie de extensão da casa e, portanto, deve ser um lugar onde o empregado sinta-se bem. Os funcionários levaram tão a sério o conceito que, ao aplicá-lo, construíram verdadeiras praças de lazer dentro da fábrica, com bancos, televisão e vasos com plantas trazidas de casa. Cada operador é responsável pela limpeza da área em que trabalha. "Ficou comprovado, com a experiência da Marcopolo, que a liberdade e a responsabilidade podem caminhar juntas no ambiente de trabalho", diz Gomes, diretor industrial.
A introdução do novo sistema na Marcopolo não foi tão simples como se poderia pensar. Afinal, tratava-se de uma empresa bem-sucedida, com quase 4 000 funcionários, líder nacional no mercado de carrocerias de ônibus e quinta maior do mundo no setor. Quando Bellini retornou do Japão, com mais de 14 horas de fitas gravadas e um sem-número de anotações, ainda persistiam algumas dúvidas. Os funcionários se adaptariam? Não haveria risco de que o manche da empresa fugisse ao controle com a liberdade concedida aos empregados? O empresário preferiu arriscar. Deixou, por exemplo, que os próprios funcionários decidissem se as discussões sobre melhoria de produtividade e qualidade deveriam ser feitas no horário de trabalho ou nos intervalos - elas começavam na fábrica e continuavam durante o almoço. "Tivemos muita sorte, pois os empregados compraram a idéia", diz Bellini.
Nem todos compraram. Formaram-se focos de resistência às mudanças na área administrativa, na qual o modelo participativo de gestão ainda caminha a passos de tartaruga com relação à fábrica. No início, a grande reação às transformações partia das chefias, que assistiam perplexas a uma verdadeira revolução de hábitos. "Muitos superintendentes, principalmente os da fábrica, sentiram-se inseguros, pois não queriam perder o status de dar ordens", diz Bellini. "Outros, quando convocados a trabalhar num esquema participativo, tiveram dificuldades de adaptação." Com a eliminação de algumas instâncias hierárquicas na empresa e a reordenação de tarefas e com o corte das cabeças de alguns caciques, houve certa atomização de poder dentro da Marcopolo. Surgiu, então, uma estrutura hierárquica bem mais simplificada. Hoje, enquanto diretores e superintendentes estão mais envolvidos com a questão estratégica e com os resultados da empresa, os operários encarregam-se de organizar a produção. A resistência das chefias é compreensível: afinal, embora a Marcopolo tivesse feito remanejamentos designando algumas delas para funções administrativas, muitos acabaram perdendo o emprego. Dos 140 funcionários demitidos em fevereiro passado, cerca da metade ocupava cargos de gerência e até de diretoria.
Participação - Na Marcopolo, o acompanhamento da produção é feito pelos grupos Simps, espécie de patrulha de produtividade. São eles que controlam a qualidade, sugerem novos processos de produção e perseguem a racionalização de custos. Apesar de assimilado pelos funcionários, o sistema de administração participativa não pode ser visto como uma panacéia para todos os conflitos entre a empresa e os empregados. Ele não funciona, por exemplo, como um anticorpo contra eventuais movimentos de greve. Tanto é assim que, em meados de junho, a Marcopolo enfrentou uma paralisação de quase dez dias, a primeira em quatro anos, por aumento de salários. O movimento alcançou todas as empresas do setor em Caxias do Sul.
"Não temos o dom de evitar uma greve, mas é inegável que o diálogo com os empregados se dá em outro nível", diz Gomes. Durante os dias parados, a Marcopolo deixou de produzir cerca de 120 ônibus. Mesmo assim, está de pé a expectativa de faturar, ao fim deste ano, 125 milhões de dólares. Também não ficaram comprometidas as encomendas externas da empresa, como os 252 microônibus vendidos em fevereiro passado para a locadora de automóveis National, dos Estados Unidos.
É na América Latina, porém, que a Marcopolo está melhor situada. As primeiras exportações se deram no início dos anos 60, com a venda de ônibus para o Uruguai e mais tarde para o Chile, onde rodam mais de 3 000 ônibus com o logotipo da Marcopolo. Com exportações que hoje representam 15% do seu faturamento, as vendas da Marcopolo chegaram a mercados tão distantes como os da África e Ásia. "Como nosso produto já tem qualidade para exportação, queremos somente torná-lo mais competitivo externamente", diz Bellini. É por isso, segundo ele, que uma das palavras mais difundidas na empresa é kaizen, que em japonês significa melhora constante. "O que foi bom ontem pode ser aperfeiçoado", afirma Bellini.
O toque oriental na Marcopolo
O que mudou na empresa com os novos métodos de administração e produtividade
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil