Reportagens › O que seria do nosso cardápio sem eles?
Trecho de reportagem publicada em Veja São Paulo, 5/02/2003
Além de transformar a São Paulo do arroz e feijão e levá-la ao progresso, os imigrantes turbinaram nossas receitas com novos aromas e sabores. Hoje, cada um em seu idioma nos brinda com um "bom apetite"
Japoneses
Quando chegaram a São Paulo:
A partir de 1908Quantos eram:
781Quantos são:
370 000, incluindo os descendentesAlgumas contribuições para a cidade:
Desenvolvimento da agricultura, o bairro da Liberdade e vários templos budistasAlgumas contribuições para o cardápio:
Sushi, sashimi, yakisoba, tempurá
Arroz, feijão, farinha de mandioca e carne de porco. De sobremesa, um pedacinho de doce de goiaba em calda ou uma fatia de manjar branco. Se São Paulo não tivesse sido invadida a partir do século XIX por estrangeiros de mais de setenta nacionalidades e etnias, a refeição típica do paulistano talvez fosse mais ou menos essa. “Antes dos imigrantes, o que se comia era basicamente uma mistura de pratos de influência indígena e receitas portuguesas adaptadas ao Brasil”, diz a cientista social Rosa Belluzzo, co-autora do livro Cozinha dos Imigrantes — Memórias & Receitas. “Pelas dificuldades em transpor a Serra do Mar, nem peixe fazia parte de nossa dieta.” Com ruas estreitas, construções de taipa e, até meados de1870, uma população menor que a vizinha Campinas, a capital não passava de uma aldeia. Quando as primeiras levas de estrangeiros colocaram os pés por aqui, São Paulo teve seus hábitos, em especial os alimentares, irreversivelmente modificados.
De início restritas às colônias, as comidas tradicionais de vários países foram aos poucos saindo das modestas pensões e conquistando as ruas. Para os imigrantes, trazer receitas para cá era uma maneira não só de perpetuar sabores, mas de preservar sua identidade. Os raríssimos restaurantes, quase sempre instalados em hotéis e freqüentados apenas pelos hóspedes, multiplicaram-se nas mãos de italianos, japoneses, gregos, espanhóis, judeus... “Com a falta de emprego e sem muita qualificação, diversas famílias que não foram para o campo decidiram ganhar a vida cozinhando para fora”, explica o crítico gastronômico Arnaldo Lorençato, que lança neste ano um livro sobre a história da gastronomia em São Paulo. “Eram estabelecimentos simples, com clientela popular. Alguns funcionavam na sala de visitas dos proprietários.” Foi a partir daí que surgiram as primeiras cantinas, como a Capuano, aberta em 1907.
Com a dificuldade de encontrar determinados ingredientes, várias receitas foram sendo adaptadas e ganharam um jeitinho paulista. Na falta de carneiro, os sírios e libaneses passaram a preparar seus quibes com carne bovina. Sem os mesmos tipos de peixe encontrados em sua terra natal, os japoneses tiveram de inovar, fazendo sushis com, por exemplo, manjuba. “É um peixe muito parecido com uma espécie que só existe no sul do Japão”, diz Shuji Koyama, do restaurante Koyama. Existem pratos que caíram tanto no gosto dos paulistanos que deixaram, de certo modo, de pertencer à comunidade de origem. Entre os mais famosos, estão a pizza, a esfiha, o macarrão e o frango xadrez, que podem ser encontrados em praticamente toda esquina, de sofisticados restaurantes a redes de entrega em domicílio. “Não há nenhuma cidade brasileira com tamanha diversidade gastronômica”, afirma a historiadora Sônia Maria de Freitas, do Memorial do Imigrante.
Foi assim que, graças aos imigrantes do mundo inteiro, a cozinha transformou-se na marca registrada da cidade. A seguir, exemplos de restaurantes que viraram orgulho de São Paulo.
Rua Lisboa, 55, Pinheiros, 3088-6019 — É impressionante quanto a culinária japonesa se desenvolveu em São Paulo desde que os primeiros restaurantes nipônicos apareceram, no começo do século passado, dentro de pensões de imigrantes. Até a década de 70, comer sushi e sashimi ainda era considerado uma aventura exótica, praticamente restrita ao bairro da Liberdade. Hoje é comum ver paulistanos discutindo qual o melhor sushiman da cidade. Termos como tempurá, yakisoba, temaki e missoshiro tornaram-se familiares. Uma leva de sushi-bares pipocou em diversas regiões. Alguns sobressaem pela tradição, com bisavôs cortando algas da mesma maneira há gerações. Outros ficaram famosos pelas inovações, que incluem sushi com cream cheese e pimenta tabasco. Nenhum, no entanto, conquistou público e crítica em tão pouco tempo como Jun Sakamoto, eleito em 2002 o melhor japonês pelo júri de Veja São Paulo. O pequeno restaurante de 36 lugares, localizado numa travessinha da Avenida Rebouças, é um templo de sabores e texturas. Das mãos do paulista Leonardo Jun Sakamoto saem sushis cuidadosamente elaborados com peixes fresquíssimos. “Meu pai dizia que um restaurante não serve apenas para nutrir”, conta. “Tem de restaurar a alma, com boa comida e ambiente exemplar.” Aos 37 anos e experiência em casas como o Komazushi, ele serve em seu elegante — e caríssimo — balcão jóias como filhotes de enguia e atum com foie gras, uma de suas ousadias. “Minhas criações respeitam a tradição japonesa acima de tudo. Aqui não tem essa de colocar maionese no sushi.” Embora procure seguir os preceitos tradicionais da culinária, o restaurante tem decoração moderninha, com muito vidro e aço escovado. Escolha do próprio Sakamoto, que cursou três anos de arquitetura na USP. “Como na arquitetura, a comida japonesa preza os detalhes, a elegância e o acabamento.”
Rua Treze de Maio, 1050, Bela Vista, 283-1833 — Enquanto a maioria dos japoneses de São Paulo se dedica ao sushi, este restaurante da Bela Vista traz como marca os excelentes pratos quentes da região de Kyoto e Osaka. No mesmo endereço, funcionava o conceituado Semba, comprado pelos atuais donos em 1991 e rebatizado com o nome da família seis anos depois. Os Koyama chegaram ao Brasil em 1957, decididos a fugir da brava crise econômica em seu país. Como grande parte dos imigrantes japoneses, foram trabalhar em plantações de café no interior do Estado. “A vida era dura. Meus pais carpiam noite e dia”, relembra Shuji Koyama, um dos sócios. O sushi-bar fica a cargo do chef Kozo Yamashita, que prepara receitas apreciadíssimas pela clientela. Uma delas é o ishikari-nabe, um ensopado de salmão e verduras feito num caldo de missô.
Rua Tomás Gonzaga, 98, Liberdade, 3209-6622 — Assim como os Koyama, a saga da família Ujiie no Brasil começou na roça, em fazendas do Paraná e do interior de São Paulo. Em busca de uma vida melhor, mudaram-se para a capital, onde abriram 31 anos atrás o Sushi Yassu (diminutivo do nome do patriarca, seu Yasukazu). Até 1988 havia apenas a casa da Liberdade, mas, depois da separação do casal de proprietários, outra foi aberta na Rua Manuel da Nóbrega, no bairro do Paraíso. Dona Kuniko ficou à frente da casa pioneira e seu Yasukazu cuida, com braço de ferro, da filial. “Ele não admite invencionices no sushi”, diz a filha Márcia Mayumi. O cardápio dos dois restaurantes, com cerca de 200 opções, entre elas combinados, é idêntico e traz ótimos pratos, muitos pouco conhecidos pelos brasileiros. Um é o iamakake-don, uma saborosa tigela de arroz quente coberto com cará ralado e pedaços de atum cru.
Os japoneses chegaram aqui há um século. Desde junho de 1908, muita coisa aconteceu. Ajude a resgatar essa memória.
Conte sua história em vídeos, fotos, áudios e texto Monte a árvore genealógica
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil