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Religiões, 7/08/2007

No princípio, foi o Buda

Budismo, a religião do indivíduo (continuação)

Nilton Pavin

Imagem do Buda Reclinado, no templo de Wat Pho, em Bangcoc, na Tailândia.

A vida de Sidarta Gautama – o Buda, ou seja, “o Iluminado”, “o Desperto” – foi contada somente cinco séculos depois de sua existência, que se deu provavelmente entre 563 a 483 a.C. Semelhanças com as histórias de Jesus, Moisés e outros personagens bíblicos não são mera coincidência. “Como ocorre com muitos relatos de vida de grandes líderes espirituais, a ‘biografia’ de Sidarta é pontuada de episódios arquetípicos, presentes em outros sistemas de crenças”, diz o jornalista Caco de Paula, no livro Buda.

Assim como Moisés, Sidarta também revoltou-se com as injustiças sociais sofridas pelo povo do qual era príncipe. Passou a juventude cercado de luxos e prazeres nos palácios do pai, líder do clã dos Sakyas, no norte da Índia. Foi quando deixou as muralhas do palácio pela primeira vez, que travou contato com o sofrimento humano. Percebeu que a gente ao seu redor padecia com a doença, a velhice e a morte. Inconformado, Sidarta abandonou tudo para percorrer a Índia em busca da sabedoria.

Se as delícias do mundo o distanciava da iluminação, pensou ele, talvez o verdadeiro caminho fosse o ascetismo. Passou fome, entregou-se a uma vida de mendicância – mas constatou que esse também não era o meio de alcançar a sabedoria. Até o momento em que, depois de dias sentado em posição de lótus, disposto a vencer todos os medos e mistérios, Sidarta atingiu a iluminação. Daí, saiu pelo mundo ensinando o que havia descoberto. Mas seus conselhos não se tornaram dogmas ou normas rígidas aos fiéis. O Buda dizia que ninguém deveria tomar suas palavras como leis imutáveis. Essa liberdade foi fundamental para que a religião do príncipe indiano se difundisse por todo o Oriente. Já nas primeiras décadas após a morte de Buda, a crença começou a se diversificar, adaptando-se às religiões predominantes na Ásia daquela época.

Aos poucos, o Budismo tornou-se uma das principais doutrinas da Índia. A religião ocupou uma posição importante no Oriente até o século 13, quando a invasão muçulmana passou a persegui-la. Templos, estátuas e mosteiros budistas foram varridos do mapa, e os fiéis passaram a correr perigo na Índia. O Budismo nunca voltaria a predominar em seu berço: hoje, menos de 1% dos indianos é praticante da religião.

Nilton Pavin
Estupa de Swayambhunath, em Katmandu, onde estão os olhos perfeitos de Buda, que enxergam a tudo e a todos.

Quando os muçulmanos chegaram à Índia, o Budismo já tinha se disseminado para várias direções. Nos países do sul – Sri Lanka, Laos, Tailândia, Miyanmar, Camboja, Vietnã –, espalhou-se com poucas adaptações: lá predomina a corrente Theravada, a única remanescente do Budismo original. Ao norte, na China, a doutrina de Sidarta Gautama misturou-se ao Taoísmo. De lá, a religião foi parar na Coréia e no Japão: da mescla com o Xintoísmo, nasceram as diversas tradições budistas que existem hoje.

Sem apego e sem sofrimento

Tudo, segundo a doutrina do Buda Sidarta Gautama, é sofrimento. Ele está presente no nascimento do homem e o acompanha a cada dia nos episódios de sua vida e nas vontades não realizadas. Sua origem está nos desejos e no anseio de satisfazer os sentidos. Por isso, para os budistas, é fundamental livrar-se da influência do “eu”, que leva o homem à sede de satisfações mundanas. “É preciso desapegar-se do imediato para voltar-se à verdadeira essência de si mesmo”, afirma Francisco Jo-shin, da Comunidade Zen Budista do Brasil.

O desapego só vem com a prática religiosa – seja a meditação, seja a recitação de mantras. Além disso, é necessário ter uma conduta correta durante toda a vida, já que cada passo do indivíduo, pela lei da ação e reação, pode influenciar seu carma, ou seja, as forças que recaem sobre uma pessoa conforme seu comportamento e que determinam seu futuro. Por isso, ensinava Buda, para alcançar o Nirvana é preciso tomar o “caminho do meio”, que inclui oito passos: a compreensão correta (não existe um “eu” individual), a atitude correta (boa vontade), a fala correta (honestidade), a ação correta (não-violência), o modo de vida correto (não impor sofrimento aos outros), o esforço correto (concentrar-se em ações nobres), a atenção correta (máxima percepção do presente) e a concentração correta (ter a mente tranqüila).

Quando o indivíduo consegue se livrar dos apegos materiais e intelectuais, o “eu” não interfere mais e o sofrimento se extingue. Além de não pensar em seus desejos e preocupações, o homem se vê livre dos tormentos do passado ou da ansiedade quanto ao futuro: admite a impermanência e vive o presente em sua plenitude. Trata-se de uma etapa fundamental rumo ao Nirvana, o estado mental em que o ser humano adquire uma total independência do “eu”. “Essa iluminação não precisa ser algo transcendental, mas a transformação da pessoa em um ser sábio e correto”, diz a monja Kelsang Pälsang, da Nova Tradição Kadampa.

Mas o Nirvana não transformará apenas a atual existência do fiel que atingiu a iluminação, mas, sim, todo o ciclo de vida e de morte. “Estamos sempre morrendo e nascendo, como dois sonhos sem conexão entre si, porém tidos pela mesma pessoa”, afirma a monja Pälsang. Por isso, a busca pela iluminação pode barrar a samsara, a roda de sofrimento presente em toda a existência humana. “Assim nos tornamos capazes de evitar o renascimento confuso e descontrolado”, diz Pälsang. Para outras correntes budistas, como a Agon Shu, a grande meta é interromper as reencarnações sucessivas. “Precisamos aproveitar todos os momentos da vida para nos livrar da roda cármica”, afirma o mestre Keitaro Hayashi, da Agon Shu de São Paulo. “É ela que perpetua toda as angústias do ser humano.”

Nirvana em várias versões

O Budismo ganhou a cor de cada cultura e de cada país por onde se espalhou. E dessa adaptação surgiram as principais escolas budistas. A tradição que mais se aproxima da crença original é a Theravada, que significa “à maneira dos antigos”. Trata-se do Budismo mais erudito, inicialmente praticado pelos monges, que tem como meta a iluminação individual. O Budismo miscigenado do resto da Ásia originou o tronco Mahayana, leigo e popular, que abriga quase toda a diversidade dos grupos atuais. Essa corrente é tão grande que uma de suas ramificações é considerada outro grande tronco: o Budismo tibetano, ou Vajrayana, caracterizado pela mistura com o Tantrismo, conjunto de ensinamentos sobre a transformação da mente. A seguir, os principais grupos budistas que têm representação no Brasil.

Nova Tradição Kadampa
Corrente tibetana que acredita na felicidade como um estado mental, independentemente de circunstâncias externas. Esse estado é atingido com a meditação, que traz paz e bem-estar.
www.budismo.org.br

Theravada
Tradição budista mais antiga, ensina que cada um é responsável pelo seu próprio caminho. A meta é atingir a iluminação individual. Há menos ênfase no caráter devocional da religião e mais na meditação.
casadedharma.virtualave.net
www.centrobudista.com

Soka Gakkai
Tornou-se a maior corrente budista no Brasil, com mais de 100 mil praticantes. Nasceu no Japão da divergência com o Budismo da linha Nichiren Shoshu, iniciada com um monge no século 13. Além das atividades no templo, os praticantes fazem reuniões em casa, quando relatam suas experiências com a recitação do mantra Nam-myoho-rengue-kyo, que cobre todas as leis do universo.
www.bsgi.org.br

Terra Pura
Foi trazida ao Brasil pelos imigrantes vindos do Japão, onde é bastante difundida. Não há destaque para práticas individuais ou meditativas: o que predomina é a recitação do mantra nembtsu. “A Terra Pura é voltada para o homem comum, que não tem tempo de para disciplinas rígidas e retiros”, diz o estudioso Ricardo Mário Gonçalves.
www.terrapura.org.br

Gelupa
Representada pelo dalai lama Tenzin Gyatso e pelo lama brasileiro Michel Rimpoche, é a principal corrente do Budismo tibetano. Atrai, desde a década de 60, pessoas interessadas na espiritualidade oriental e está bastante relacionada com a yoga.
www.centrodedharma.com.br

Agon Shu
Considera-se a reunião de ensinamentos das três grandes escolas budistas. “Somos um quarto grupo, que não se enquadra nos tradicionais”, diz o monge Keitaro Hayashi, da Agon Shu de São Paulo. “Não esperamos uma graça divina ou a iluminação, mas barrar a roda de encarnações, que é a origem do sofrimento.” Anualmente, a Agon Shu realiza a “cerimônia do fogo sagrado”, para a purificação dos carmas do universo. As labaredas criadas no ritual tomariam a forma de divindades.
www.agon.org

Zen Budismo
Corrente que mais enfatiza a prática da meditação, prega a libertação do “eu” e a atenção plena a cada ato que se realiza. “Quando estou comendo, estou comendo, quando estou andando, estou andando”, afirma Francisco Jo-shin, da Comunidade Zen Budista do Brasil.

www.monjacoen.com.br

 


Nilton Pavin Shwethalyaung, imagem de Buda com 54,88 metros de comprimento, construída na periferia de Yangun, em Mianmar, pelo rei Migadepa.

Hierarquia budista

Não há um único líder institucional no Budismo. Tenzin Gyatso, o 14º dalai lama, está à frente apenas da tradição Gelupa, a principal corrente varjayana. Seu discurso de tolerância religiosa cativou budistas das demais escolas, além de representantes de outros credos, e o levou à conquista do prêmio Nobel da Paz, em 1989. “Ele se tornou uma figura retórica e simbólica para o Budismo em geral”, diz o teólogo Frank Usarski. Outras tradições varjayana têm uma relação tão próxima com Dalai Lama que ele é considerado, erroneamente, líder delas também.

Outra corrente com chefe mundial é a Soka Gakkai. Na parede da casa de milhares de budistas está a foto do japonês Daisaku Ikeda, presidente honorário da associação. Também é muito comum vê-lo ao lado de chefes de Estado e personalidades, como Nelson Mandela. “Nos últimos anos, a Gakkai procurou associar a figura de Ikeda à de um grande líder espiritual da humanidade, comparável a Gandhi e a Martin Luther King”, afirma Ronan Alvares Pereira, da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos.

“Alguns líderes são reconhecidos mundialmente, mas não existe, na maioria das correntes budistas, uma hierarquia formal”, diz Arthur Shaker, coordenador da Casa de Dharma, do Budismo theravada, em São Paulo. Segundo ele, monastérios e templos são coordenados por monges, fiéis que se dedicam inteiramente à prática e adquirem o título depois de cerca de cinco anos de estudo. “Muitos monges também viajam pelo mundo transmitindo seus ensinamentos”, afirma ele. Um monge pode fundar um templo ou mesmo um monastério, mas continua tendo um guia espiritual. “Ter um guru em quem devemos confiar é muito importante para que possamos nos livrar da influência do ‘eu’”, diz a monja Pälsang, cujo guru espiritual é Geshe Kelsang Gyatso, líder maior da Nova Tradição Kadampa.

Budismo à brasileira

A nação mais católica do mundo acolheu o Budismo por meio de uma tradição bem brasileira: o sincretismo religioso. Por aqui, os ensinamentos de Buda mesclam-se com os costumes brasileiros, atraindo principalmente não praticantes de outras religiões, interessados na possibilidade de gerenciar a própria espiritualidade. Segundo dados do IBGE, em 2000 os budistas somavam 245 mil pessoas no país, mas muita gente acredita que o número pode ser maior. Além disso, algumas práticas budistas, como a meditação, espalham-se pela população sem que isso signifique uma adesão ao Budismo.

“As pessoas que procuram o Budismo estão em busca de algo que possa libertá-las da depressão ou de pensamentos negativos”, afirma Daniel Calmanowitz, do Centro de Dharma da Paz. A religião, então, torna-se atraente pelo seu poder de reavivar a espiritualidade das pessoas. “É quase um programa de utilidade pública”, diz a monja Kelsang Pälsang, da Nova Tradição Kadampa. “Apresentamos os ensinamentos de uma maneira contemporânea, para facilitar a prática no mundo atual. E as pessoas podem usá-los como querem para se sentir melhor.” É assim que o budista curitibano Fabiano Buck procura melhorar suas relações no dia-a-dia. “Tento adquirir paciência”, afirma ele, que é católico de batismo. “Por meio do Budismo, praticamos um exercício de autocontrole, sem a reverência a um Deus.”

É no desprendimento da idéia de Deus que reside o maior desafio do budista brasileiro. Afinal, como é possível para um cristão, mesmo que não seja praticante, livrar-se da figura divina? Na versão brasileira do Budismo, o fiel não precisa abandonar totalmente o conceito. “A figura de Deus é substituída pelas forças que regem o universo”, diz Daniel Calmanowitz “Se tenho Jesus como alvo da fé, posso mantê-lo no Budismo. Buda e Jesus não brigam entre si.”

Quando o praticante se converte, precisa focar suas ações em uma conduta que, sobretudo, respeite a vida e o semelhante. O Budismo põe o foco no indivíduo, mas não se traduz numa religião individual. Na escola mahayana, o praticante deve se tornar um bodhisattva, alguém que procura atingir a iluminação em benefício de todos os seres. “A pessoa deve ajudar os outros no que precisam até se tornar um Buda, um Iluminado. Assim, conseguirá, de fato, fazer o bem”, afirma Daniel.

Foi em busca de maior atenção a si mesma e às outras pessoas que a psicóloga Claudia Castro Alves, de 34 anos, passou a freqüentar templos budistas. “O Budismo, para mim, é mais uma filosofia de vida que uma religião propriamente dita”, conta ela, que mora em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, e freqüenta o Centro de Dharma duas vezes por semana. “Adaptei-me à crença budista porque as normas não são rígidas: o que você fizer está de bom tamanho. Não preciso me sentir culpada. E o compromisso é espontâneo”, afirma.

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