Reportagens › Japão Pop Show
Viagem e Turismo, 1/06/2005
TEXTO E FOTOS KIKO NOGUEIRA
ARTE GUILHERME COLUGNATTI
Cinco cidades-símbolo do país dos samurais, do Pokémon, do trem-bala, do yen, do zen e do Ultraman. Um lugar do outro lado do mundo. E, talvez por isso, fascinante. Né?
Tóquio
5 da manhã. Maldormido, ainda sob o efeito do jet lag, me encaminho para a fileira de táxis na frente do hotel. Faz calor. O motorista está com o vidro fechado, ar-condicionado ligado, fumando. Minutos depois ele me deixa perto do grande portão, ao lado do qual fica o templo Namiyoke-jinja. Entro no mercado. Cheiro de peixe no ar. A água do chão molha meu tênis. Substâncias esquisitas grudam na sola. Você pode achar estranho acordar de madrugada por causa de um mercado. Mas não é um mercado qualquer – é o maior do mundo, o Mercado de Peixes de Tsukiji.
Calcula-se que, diariamente, 4 mil toneladas de frutos do mar sejam comercializados nessa pequena cidade. Às 5h30 me aproximo dos galpões nos fundos, onde acontecerá o grande espetáculo, a razão de eu ter acordado às 4h da matina: o leilão de atum. Os atuns estão enfileirados no chão, congelados. Cada um deles tem número de identificação. À medida que o dia esquenta, o vapor que dos bichos emana confere um clima de filme B de ficção científica ao recinto.
Os compradores – donos de restaurantes, de redes atacadistas, peixarias etc. – circulam com pequenas lanternas e faquinhas, concentrados. Volta e meia param diante de um exemplar, cortam um pedaço da carne e a examinam, cheirando, analisando sua textura. 6h. Palanques são montados. Começam os lances. Dois leiloeiros, num púlpito, anunciam os lotes em altos brados.
Os compradores estão aboletados na arquibancada. “Um atum foi arrematado por 10 mil dólares”, ouço um guia turístico dizer em inglês para seus clientes. Dois sujeitos iniciam uma discussão feia, que termina, instantes depois, com os dois se curvando, numa reverência. Às 7h, tudo terminado, os atuns são levados em carrinhos pequenos, de madeira, atravessando o mercado e a multidão que vende, grita, ri, discute, cospe, fuma, reza em meio aos frutos do mar.
Essa massa de energia foi o que permitiu a Tóquio se transformar, nos últimos 200 anos, de uma vila portuária, ao lado de um pântano, numa das metrópoles mais ricas do mundo, permanentemente plugada no futuro, presa ao passado, destruída e reconstruída ao longo da história, um monumento à impermanência. Com cerca de 30 milhões de habitantes, a capital do Japão é feita de telões, de pré-adolescentes com celulares enfeitados, de jovens executivos trajando ternos iguais. De gente amontoada. Tóquio é a mais perfeita tradução do Japão, o país que só se abriu para o mundo em 1853, quando os canhões dos navios do comodoro americano Matthew Perry o obrigaram a tanto, e que hoje imita, ama e despreza o Ocidente. Uma cidade milionária, onde um melão custa 100 dólares.
Não há melhor lugar para ver essa riqueza do que o bairro de Ginza, com suas megastores da Nike e da Sony e lojas de grifes chiques tipo Comme des Garçons e Issey Miyake. Ali ficam também as lojas de departamento (os depato). A Matsuya e a Takashimaya são clássicos do consumismo. Invariavelmente, o subsolo dos depato é dedicado à gastronomia, com vários quiosques, todos eles impecáveis, cada um numa cor, vendendo de pão-de-ló (castera, para eles, do espanhol castela) a morango a 4 dólares (cada um), de chocolates Godiva a bentôs (uma marmitinha de sushi para viagem). Faça uma boquinha das amostras grátis, já que há sempre degustação e a vida é cara. Em época de liquidação, alguns depato põem meninas, com megafone, anunciando os produtos. Uma em cada andar. O caos. Japoneses são vítimas da moda. A rua Omotesando, ou Omotesando Dori, é uma versão século 22 da velha Champs-Elysées. O belíssimo prédio da Prada, com seus losangos de vidro, é uma ode à ostentação. Dá medo de olhar para ele e ser obrigado a pagar. De onde estou, num passeio de turista brasileiro, fico impressionado com as fachadas de Chanel, Dior, Louis Vuitton. Ainda que você não compre nada, os edifícios e a fauna em torno deles são atrações à parte.
No outro extremo dessa loucura, há os templos budistas e xintoístas. O xintoísmo é a religião nativa, do povo, com suas milhares de divindades e sua praticidade. “Tudo o que foi útil a você é digno de ser reverenciado”, conta meu amigo Fujii, que me serviu de guia, diante de um altar para um par de óculos. O budismo veio da Coréia, no século 6. Adotado pela nobreza, no século 12 ele adquiriu uma feição própria: o zen-budismo. Os dois, xintoísmo e budismo, se misturaram ao longo do tempo. O templo budista de Senso-Ji, no bairro de Asakusa, é o mais velho santuário de Tóquio. Diz a lenda que foi fundado para abrigar uma imagem de Kannon, o Buda da compaixão, descoberta por pescadores no Rio Sumida em 628 d.C. A entrada, o Kaminari-mon (Portão do Trovão), é protegida por duas lindas imagens: Fujin, o deus do vento, do lado direito; e Raijin, o deus do trovão, do esquerdo. No pátio fica um pagode. Os fiéis se aproximam do altar, jogam uma moeda, batem palma e fazem uma reverência. Vejo uma pomba sair voando após se banhar no chozuya, o reservatório de água corrente para a purificação. A rua em frente ao templo, Nakamise-dori, é repleta de lojinhas de suvenires e de comida, tudo arrumadinho, impecável. O biscoito de arroz, sembei, é um arraso.
A alta densidade demográfica se materializa na hora do rush, na saída do metrô de Shibuya, tido como o cruzamento mais movimentado do planeta. Imagine 3 mil pessoas atravessando a rua – juntas, em cinco direções diferentes. Assisto a isso do segundo andar da loja da Starbuck’s, sugando um café expresso, depois de entrar num pachinko. Mistura de fliperama com pôquer, o pachinko é um jogo de azar disfarçado. Otomi Nakamura, 45 anos, três filhos, é viciado nesse negócio. Passa toda noite no salão de pachinko, numa das máquinas, para, no final, depois de gastar uma bala, sair com um “prêmio” (um urso de pelúcia ou um relógio, ele me conta). “Não é jogo de azar”, diz Nakamura. “É jogo de sorte. Além do que, uma boa diversão.”
Você viu o filme Encontros e Desencontros, com Bill Murray? É tudo verdade. A maioria dos japoneses é monoglota. Quando alguém fala inglês, é geralmente ininteligível. Nem nos hotéis a coisa é diferente. As placas das ruas e de alguns lugares turísticos são em inglês, vá lá. Com a mania de copiar, eles adotaram alguns termos e os traduziram: birô (beer); burakofasto (breakfast) etc. Eles apreciam quando você tenta falar o idioma – embora com um certo tom de pena para com o pobre gaijin. Agora, ainda que você esmerilhe, jamais lhe darão parabéns e tapinhas nas costas. A discrição e, no limite, a falta de transparência nas relações são arraigadas na sociedade. Eis umas das heranças do Bushidô, o código de conduta dos samurais, que teve enorme influência no Japão. Não existe “sim” – o termo mais próximo é hai, que significa “entendo o que você diz, mas não concordo, necessariamente”.
Receber bem, diga-se, é questão de honra. Teruo Fujii, aposentado, foi meu guia durante alguns dias em Tóquio, por indicação de uma amiga. Fujii morou no Brasil entre 1959 e 1970. Jamais nos vimos antes. Mas Fujii foi me buscar no aeroporto e encontrou para mim um hotel de 90 dólares a diária, verdadeira mosca branca, no bairro de Shimbashi, a cinco minutos do metrô.
Grande Fujii, maluco por seu Toyota Celsior dotado de computador de bordo. Fomos juntos ao monumental Parque Ueno, o lugar onde Tóquio se encontra para flanar, cantar, namorar, meditar. Ali estão alguns dos museus mais importantes da capital, como o Nacional e o Metropolitano de Arte, além de templos e do zoológico, cuja grande atração são os pandas-gigantes (sempre dormindo, os fofos vagabundos). Fujii me carregou para o bairro de Roppongi, com seus bares, boates, restaurantes e karaokês. É onde a turistada de todo o planeta se encontra.
O Hard Rock Café fica na área, assim como diversos locais que dão aquela sensação de familiaridade (McDonald’s, cantinas italianas, restaurantes mexicanos, pizzarias). De lá rumamos para o distrito de Kabukicho, onde marinheiros americanos assediam os visitantes, dando filipetas de casas de strip-tease com garotas do Leste Europeu e tailandesas, hotéis de alta rotatividade, casas de massagem e bares no-pants (as garçonetes ficam nuas da cintura para baixo).
A sexualidade das garotas japonesas não é explícita. Ninguém dança na boquinha da garrafa. O padrão de beleza é o que as gueixas imortalizaram: mulheres com jeitinho infantil, frágeis, delicadas. Há uma sensualidade tocante nas estudantes de saia curta e meias trêsquartos que desfilam pela cidade. No bairro de Harajuku estão as lojinhas da Takeshita-dori (dori significa rua), um shopping a céu aberto que vende camisetas, brinquedos antigos, cds de colecionador e tralhas modernetes. “Para brasileiro, o preço é menor”, diz o vendedor na linguagem universal dos vendedores.
Aos domingos, em Harajuku, a Ponte Jingu Bashi, perto do Templo Meiji, vira ponto de encontro de adolescentes que vão praticar uma coisa chamada cosplay (costume play): fantasiar-se com as roupas de personagens de mangás ou de membros de bandas de rock japonesas de visual espalhafatoso. “É só uma forma de a gente se divertir”, diz a estudante Michiko Tobuko, 15 anos. Michiko e as amigas levam seus figurinos numa mochila e se trocam in loco. Depois ficam tirando fotos de si mesmas. O visual é uma mistura perturbadora de filetes de “sangue“ escorrendo no rosto, tapa-olho, batom azul, meias rasgadas. A ironia do cosplay é que, até quando tentam ser diferentes, os japoneses são iguais. Todos se vestem, basicamente, como o mesmo personagem.
Na vida real, é a mesma coisa. Em Tóquio, a paisagem urbana é marcada por dois tipos: os salarymen (sararimen) e as office-ladies (oeru, abreviação de office-reidi). Eles são jovens executivos, cabelo na última moda, terno na última moda, sapato na última moda. Para elas, terninhos na última moda. Eles se encontram no metrô, teclando, enlouquecidos, e-mail do celular ou dormindo no banco e de pé.
“Esta cidade é moderna, mas não sei se é bonita”, me diz o sábio Fujii, num passeio de barco pelo Rio Sumida até a Ilha de Odaiba, antigo depósito de lixo transformado num concentrado de shopping centers e parques de diversão, marcada pelo edifício da Fuji Television, em forma de bola, e pelo shopping Venus Fort, de inspiração “renascentista”. Eventualmente, os edifícios futuristas de Tóquio se tornam motivo de piada. O pior deles é a sede da cervejaria Asahi, que tem um anexo chamado “A Chama Dourada”. Assinada pelo festejado designer Philippe Starck (cujo nome costuma vir precedido por “gênio”), a obra ganhou o apelido de “Cocô Dourado”, dado seu formato. Starck tentou criar a representação da espuma da cerveja, mas errou. Se você precisava de um argumento para provar que os designers não são enviados de Deus à Terra, ei-lo. Em matéria de cerveja, o melhor é fazer uma excursão ao Ebisu Garden Place. Embora não seja nenhum jardim, é um fantástico complexo de lojas e restaurantes, onde ficam uma torre de 39 andares e o fabuloso Museu da Cerveja. Bancado pela cervejaria Sapporo, ele mostra como é fabricada a bebida, depois de um filminho introdutório em três dimensões. Incompreensível, mas sensacional. Saio do museu achando que Tóquio é isso. Incompreensível. E sensacional. Com certeza, Fujii-san teria a resposta no computador de bordo de seu Toyota.
Honorável Fuji
Há um ditado japonês que afirma: “Todo homem deve subir o Monte Fuji uma vez, mas só os tolos o fazem duas vezes”. Para os japoneses, a escalada dos 3 776 metros do Fuji-san (honorável Fuji) é um compromisso de vida. Para os turistas, é uma das principais atrações do verão. A subida dura, em média, oito horas – mas, dependendo da lotação (às vezes, há filas) e das condições físicas do aventureiro, pode chegar a 12. Da estação de trem Shinjuku, em Tóquio, saem 15 ônibus por dia. A tarifa custa 20 dólares e a viagem dura 2h30. É bom sair cedo para ir se aproximando do topo até o cair da noite. O Monte Fuji é dividido em dez estações-base. O ônibus deixa o turista na metade da montanha, no quinto estágio, de onde se inicia a escalada a pé. A meta é assistir ao espetacular nascer do sol no pico, por volta das 4h30, sob uma temperatura de zero grau. Leve roupa suficiente para enfrentar o frio. O Monte Fuji tem uma infra-estrutura de espantar, com restaurantes, lojas de suvenires, estalagens para pernoite (de 40 a 60 dólares por pessoa), posto médico e até um minitemplo no topo. Lá, uma máquina de refrigerantes vende a Coca-Cola mais cara do mundo (5 dólares a lata). Entre novembro e abril, quando a neve cobre a montanha, a trilha é fechada e o turismo, suspenso.
Os japoneses chegaram aqui há um século. Desde junho de 1908, muita coisa aconteceu. Ajude a resgatar essa memória.
Conte sua história em vídeos, fotos, áudios e texto Monte a árvore genealógica
Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil