Reportagens › A história de um pequeno herói
Realidade, 1/08/1967
TEXTO DE JOSE CARLOS MARÃO
FOTOS DE JORGE BUTSUEM
Um japonês, que hoje está com 85 anos, criou um império, o da juta: 34% da economia do Estado do Amazonas. Mas a juta está condenada e seu império chegará ao fim, junto com o velho japonês Oyama e sua história.
Oyama San, como todo mundo chamava aquêle japonês magrinho de 50 e tantos anos, saiu mais uma vez remando pela várzea. Era uma manhã de janeiro, em 1935, e Oyama San ia ver sua plantação de juta. Percorrendo as margens do Amazonas, êle olhava cada planta. Seu rosto queimado tinha a mesma expressão de desânimo de tôdas as vêzes em que ia ao rio: a juta não passava de um metro e meio de altura, um terço do tamanho normal. Assim, ia se repetir o fracasso do ano anterior.
No limite da sua várzea, porém, o velho estremeceu. Voltou-se.para Tamon, seu filho, que também estava no barco, e apontou dois pés de juta diferentes dos outros:
- Olhe aquêles dois!
O filho ainda procurava localizar as plantas, o pai já saltava da canoa, entrava pela água e ia olhar de perto. Matou então uma velha charada: as sementes, importadas dos grandes países produtores, eram ruins, pois não interessava a êles ter um outro grande concorrente no mercado internacional de juta. Mas, certamente por engano, tinham vindo algumas sementes boas. Em casa, à noite, Oyama reuniu os filhos e propôs uma tarefa para tôda a família: cuidar religiosamente daqueles dois pés de juta, com todo o carinho.
No dia seguinte, cedinho, os dois pés já estavam cercados por uma proteção de madeira. Apesar de viver apenas há um ano no Brasil, o velho Oyama sabia que ali onde estava as enchentes eram violentas.
Veio a época do corte da juta. Todos os pés foram cortados, menos dois. Oyama ia esperar as sementes que êles dariam. E iam fazer dêle um homem célebre. Vieram as enchentes. A família Oyama cuidou de perto das duas preciosidades, os dois arbustos que eram a esperança de todos. Mas a água barrenta do Amazonas ia levar um dos pés.
O outro foi salvo. E mais tarde deu um punhado de sementes. Oyama San plantou cada uma, na época certa, em terra firme. E seu esfôrço um dia - talvez o mais feliz de sua vida - surgiu da terra: germinaram quase 200 plantinhas.
Aquêle pé de juta salvo pelo japonês Riota Oyama - o Oyama San - é o pai de tôda a juta que se planta hoje na Amazônia. Isto é, 34% do valor das vendas do Estado do Amazonas para o exterior ou outros Estados. E é, também, uma das pouquíssimas culturas organizadas de tôda a região amazônica.
Na tarde do dia 6 de junho de 1967, Riota Oyama, velhinho, já meio surdo, incapaz de falar o português que dominava muito bem antes, atravessou, com passo militar, a pracinha principal de Parintins, cidade onde vive há 30 anos. Vestido com uma calça e uma camisa surradas, sandálias havaianas, foi até o mercado, na beira do rio. Viu alguns velhos amigos, olhou uns peixes, mas logo resolveu voltar. Então fechou o enorme guarda-chuva prêto que usa para proteger-se do sol fortíssimo da região. Já estava sentindo frio e andou de volta, tomando sol, o quilômetro que separava o mercado de sua casa.
Foi um dos seus raros passeios. Com 85 anos, nem rico nem pobre, continua ativo, mas só sai de vez em quando:
- Tenho poucos, amigos, agora. O Kimura, que é dono do cinema. Nakaoushi, que mora do outro lado do rio e o Kawakami.
O velho Oyama mora numa casinha de tábua, atrás da grande e de tijolos de seu filho Tamon. Essa casa era de Oyama, mas êle quis ficar sozinho, com a velha Kioco, sem interferir na vida do filho e da nora. Tamon, na sua calma oriental, explica em mau português:
- Gente véio a gente não entende. Mas precisa paciência.
Rioto Oyama tem hoje duas grandes atividades: cuidar de sua horta e ler. Tudo o que aparece escrito em japonês o velhinho lê. Devora os jornais japonêses que chegam de São Paulo. E a horta é fundamental. Riota se alimenta, principalmente, de verduras e frutas. E como ninguém - além de seu amigo Nakaoushi - cultiva verduras em Parintins, o velho tem sua própria horta, no enorme terreno que cerca as duas casas, a sua e a de Tamon.
- Quando não tem fruta, o véio recrama muito - diz o filho.
E conta que Riota não era tão exigente. As exigências vieram depois que êle leu num jornal que numa região da Rússia há pessoas com 140 anos de idade. É gente que se alimenta de frutas e verduras.
Nas pouquíssimas vêzes que o velhinho Riota Oyama aparece nas ruas de Parintins, os caboclos remadores do mercado, as crianças, todos o olham com um respeito sagrado. Ninguém fala com êle. O máximo que se diz é:
- Ó lá o Oyama San.
Oficialmente, dos governos e dos industriais de fibra, êle recebeu o título de Pai da Juta. Mas ficou nisso só. Com o govêrno japonês foi diferente. Já recebeu duas condecorações e cartas de ministros importantes. Na Câmara Municipal de Parintins há um projeto para a construção de um busto em sua homenagem. Mas, por enquanto, é só projeto pois a maioria dos vereadores acha que é necessário o velhinho morrer primeiro. Os amigos de Oyama têm outra opinião:
- O que adianta estátua depois de morto? Por que o govêrno brasileiro não lhe dá como prêmio uma viagem ao Japão, que êle pode aproveitar vivo?
Oyama diz que os brasileiros prometem muito, mas não querem fazer nada. Por isso, já não recebe ninguém.
Diz que a última vez que acreditou em promessas foi na Festa da Juta, na capital, Manaus. Veio até uma comissão para convidá-lo. No dia da festa, lá estava o velho Oyama, engravatado, terninho bem passado. Mas ninguém tomou conhecimento de sua presença. Oyama resolveu vingar-se: fêz o genro, que mora em Manaus, convocar a imprensa, e deu uma entrevista falando mal dos homens da comissão da I Festa da Juta.
Uma viagem depois de velho
Antes de vir para a Brasil, Riota Oyama era um homem conhecido, em Okayama, Estado onde morava, no Japão. Sempre foi agricultor, mas também sempre gostou de política. Chegou a ser eleito para um carga equivalente ao da nosso vereador. Fundou, na sua região, uma cooperativa agrícola e um jornal de agricultura, que êle mesmo escrevia e editava. Sempre pensou terminar sua vida no Japão. Vivia muita bem com a mulher e os cinco filhos, três rapazes, Kazuma, Tamon e Easukiko; e duas môças, Yassimê e Kanon.
Mas o velho era muito agitado. E, entre seus amigos da política, havia o dr. Uetsuka. Além de deputado, Uetsuka era ligada a emprêsas japonêsas que iam colonizar o Amazonas e diretor de uma escola para jovens japonêses que pretendessem vir para a Brasil, tentar a Amazônia. Um dia Uetsuka perguntou a Oyama se gostaria de trabalhar com o Instituto Amazônico e tentar alguma cultura na Amazonas. Riota Oyama, com mais de 50 anos mas sentindo-se môço, não pensou mais de uma vez. Em meados do ano de 1934, com muitas outras famílias japonêsas, embarcou no "Montevideo Maru", com dona Kioco e quatro dos cinco filhos. Etsuhiko ficou, para terminar seu curso na escala de dr. Uetsuka.
A viagem levou quase dois meses, a maior parte das famílias que vieram com Oyama desceram na Rio de Janeiro para tentar São Paulo. Riota Oyama com mais cinco famílias, tomou um navio do Lóide Brasileira. Em outubro, desembarcava na colônia Andirá, terras do Instituto Amazônico.
Uma intenção que valeu
- Eu lembro coma se fôsse hoje - diz o velho Kimura, amigo de Oyama, contando daquele dia em 1934, quando os dois estavam esperando um motor (como chamam, no Amazonas, os pequenas barcos) para levá-los até a sede da companhia.
Os dois eram trazidos do Japão pelas companhias que se dispuseram a enfrentar o desafio de colonizar a Amazônia.
- Eu lembra que Oyama San falou: "Kimura, eu vou mesmo entrar no negócio da juta; juta é que vai dar certo aqui no Amazonas."
Kimura lembra também que fêz uma advertência a Oyama: ia ser difícil ganhar dinheiro com aquelas plantinhas de um metro e meio de altura. Mas a velho teve a sorte que outros não tiveram.
Enquanto a maioria dos japonêses preferiu cuidar de gado ou tentar outras culturas, só algumas famílias mais corajosas dedicaram-se à juta. Os primeiras jutais foram plantados por Casemiro Yanaoushi, antes de Oyama.
Kotaro Tuji, um dos diretores da companhia de colonização, tinha fé na juta no Amazonas, e conseguira as primeiras sementes. Quando o velho Oyama foi juntar-se a êles, a intenção de todos era trabalhar e fazer um pequeno império com aquela juta miúda mesmo. Os pés de seis metros de altura eram então apenas um sonho.
A guerra, tempo ruim
É Kimura ainda quem conta sôbre a festa em que Riota Oyama foi homenageado por seus patrícios por ter salvo aquêle primeiro arbusto, em 1935. Depois das homenagens, entregaram um presente a Oyama: um par de alpargatas. Kimura lembra a cena:
- O véio Oyama olhou o presente, fêz cara de triste, que durou só um pouquinho, depois fêz cara alegre e soltou a piada: “É pena que o meu sucesso com a juta só dê para um par de sapatos."
Todo mundo entendeu o que êle queria dizer.
Junto com o sucesso da juta, Riota Oyama teve alguns problemas. Seu filho Etsuhiko, que tinha ficado no Japão para terminar os estudos, chegou. E, mal começou a trabalhar com o resto da família nas várzeas de juta, veio a malária. A doença pegou todos, mas só Etsuhiko não resistiu.
Aquêles 200 pés de juta, conseguidos com as sementes do primeiro pé, produziram mais de três quilos de semente. E, para cultivá-las, Oyama ganhou da companhia de colonização uma ilha do rio Amazonas. Sairia daí a primeira grande produção de juta da Amazônia - três toneladas plantadas por Riota Oyama. Com dois anos de trabalho nessa ilha, a família ganhou dinheiro para comprar terras nas margens do Amazonas, as mesmas que tem até hoje, a uma hora de Parintins.
No meio disso, veio a guerra. Houve problemas e brigas internas entre os membros da companhia de colonização, e entre os próprios colonos muitos foram presos. E a companhia foi comprada por um grupo brasileiro. Mas Riota Oyama, velha rapôsa política, amigo do então governador Álvaro Maia, tinha um salvo-conduto que lhe permitia andar por todo o Estado do Amazonas.
Juta, importante ou não?
As plantações de juta na Amazônia tiveram sua fase de ouro até sete ou oito anos atrás. Depois, o interêsse dos produtores começou a diminuir. As publicações oficiais apontam como principais fatôres dessa indiferença e da decadência gradativa na qualidade:
1 - A produção de sementes centralizada entre Alenquer e Monte Alegre. Se uma enchente ataca mais essa região, há escassez de sementes. Ou queda de qualidade, como em 1965, provocada por uma sêca.
2 - O crédito variável. Não há uma segurança de financiamentos.
3 - As enchentes. A cultura tem de ser feita, obrigatoriamente, nas várzeas. E quando o Amazonas enche um pouco além do normal leva tudo, como aconteceu neste ano, provocando queda de preço, pois os agricultores tratam de cortar tudo antes que a água leve, saturando o mercado.
4 - A pouca mão de obra. Antes, os japonêses contratavam a mão de obra cabocla. Hoje, os caboclos conseguem outras ocupações mais suaves.
5 - Os intermediários, que agem como financiadores e, praticamente, determinam o preço que vão pagar. Hoje há, na região Amazônica, cinco mil plantadores de juta, todos pequenos proprietários, para 45 intermediários, 20 prensas e 10 fábricas (fiações).
De qualquer modo, das 50 mil toneladas de juta que se produzem por ano, em tôda a região amazônica, 35 mil são do Estado do Amazonas. Isso quer dizer que, ao preço de 600 cruzeiros velhos o quilo (já estêve a mais de mil, mas caiu êste ano), entram para o Estado mais ou menos 21 bilhões de cruzeiros velhos por ano.
Quase tôda a produção é consumida no Brasil mesmo, por fábricas de Manaus, Belém e, principalmente, São Paulo. Vão para o exterior apenas 4.500 toneladas, sobretudo para a Argentina, Uruguai, África do Sul e Alemanha Ocidental. A produção do Brasil, entretanto, representa apenas 2,1% do mercado mundial. Os principais Produtores são a Índia e o Paquistão, que cortam mais de um milhão de toneladas por ano.
Juta para Oyama, hoje
O velho japonês, hoje, não quer nada com juta. Fala em japonês, sentado numa cadeira de vime, na sala da casa de seu filho Tamon:
- Quando chegamos em Parintins, aqui não havia nada. Todo o progresso que tem hoje veio a pêso de juta. Tamon continua plantando, mas eu não quero mais nada. Ninguém reconhece nosso trabalho. Agora só quero morrer.
De tôda a família, é só Tamon mesmo que ainda cuida de juta. Kazuma mudou para Castanhal, no Estado do Pará, onde trabalha com pimenta do reino. Está rico. As duas môças casaram com maridos que também preferiram escapar do jutal.
- Acredito que a juta, muito importante para o Estado do Amazonas, terá mais uns dez anos de vida, como atividade econômicamente rentável. Mesmo assim, apenas por causa de sua importância especial para o Estado.
Quem diz isso é o economista Olegário Reis, diretor do Departamento de Planejamento Econômico da SUDAM - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia. Considera que a juta tende a ser substituída por produtos sintéticos, que serão de produção mais barata, ocuparão maior mão de obra e oferecerão melhor nível de vida aos trabalhadores. A juta de cultivo tornar-se-á, em pouco tempo, antieconômica e, atualmente, já não pode entrar em planos de desenvolvimento econômico.
Houve discussões, no Congresso Federal, quando se falou em substituir os sacos de juta em que é exportado o café, por sacos de papel. Os deputados da região amazônica e outros, ligados às fiações, foram contra. Mas a substituição será, segundo os economistas, inevitável.
O velho Oyama não ouve nada disso, nem quer ouvir. Está triste porque seu trabalho não foi reconhecido. Ficaria muito mais se soubesse que todo o império da juta, criado por aquêle único arbusto e suas 200 sementes, está desaparecendo. A juta espera a hora em que ninguém mais vai cuidar nem precisar dela. Para aquelas plantações imensas, vale a mesma frase que Riota Oyama repete a todo instante para seu amigo Kimura e para qualquer visitante que apareça:
- Eu agora só estou esperando a hora de morrer.
FIM
Os japoneses chegaram aqui há um século. Desde junho de 1908, muita coisa aconteceu. Ajude a resgatar essa memória.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil