Reportagens › Haicai, poesia instantânea
LIANE ALVES
No haicai, um instante precioso cabe em 17 sílabas. Basta a devida atenção
A cena não podia ser mais banal. Em um dia frio, na pousadinha de beira de estrada, algumas frutas e legumes se espalham sobre a mesa, à espera do corte. Você certamente já viu coisa parecida numa pintura de natureza morta. Talvez até ache a imagem simplória, brega. Mas ela pode ser igualmente delicada e cheia de cores. Veja:
Frescor de outono:
melão e berinjela
a cada hóspede.
Mar quebrando na praia também já virou clichê, estereótipo de momento poético, romântico. Mas é possível encontrar ali um olhar autêntico, real, de outro sabor.
A onda se retira
Trevos em pedaços,
conchas vermelhas, despojos.
Os pequenos poemas acima, conhecidos como haicais, foram escritos há mais de 400 anos. Seu autor foi Matsuo Bashô (1644-1696), guerreiro de uma família de samurais que abandonou tudo para cair na estrada e viver apenas o momento presente. E o estilo que ele ajudou a criar atravessou os séculos. O mestre zen Shunryu Suzuki, um dos pioneiros do budismo nos Estados Unidos, fala de Bashô como um peregrino grandalhão com cara de cavalo. Boa descrição. Bashô não era mesmo um religioso restrito a templos ou um mestre espiritual. Para ele, fazer haicais era como respirar. Considerado um dos maiores poetas da história dos haicais, Bashô ensinou não só uma forma inspiradora de contemplar a natureza, mas um estilo de vida, que encantou gerações por muitos séculos. Os beatniks, poetas americanos rebeldes da metade do século passado, andavam com seus livros no bolso e, uma década antes, os existencialistas franceses, como o filósofo Jean-Paul Sartre, liam suas poesias em voz alta nos cafés de Paris. O zen, uma das mais refinadas formas de budismo, estava no auge e os haicaístas se multiplicavam às centenas em ambientes literários de todo o mundo. Uma febre que durou pelo menos 20 anos – da década de 40 aos anos 60. O maior divulgador do budismo zen no Ocidente, D.T. Suzuki, consagrou o haicai (ou haiku, como é mais conhecido no Japão) como uma forma de contemplação, um exercício meditativo. Quem pratica concorda. “O haicai pode ser considerado um ‘do’, ou ‘caminho espiritual’, em japonês”, diz o técnico em eletricidade Edson Kenji Iura, criador do Kakinet (www.kakinet.com), um site bem brasileiro sobre haicais. Da mesma maneira que a meditação, os versos do haicai nos fazem voltar a atenção e a consciência para o momento presente. Na meditação tradicional, sentada, a atenção está na respiração. No haicai, ela volta-se para a natureza. Trata-se, portanto, de meditação na ação. O haicai é um tipo de retrato do que nos desperta para o encanto da vida. “Com o constante exercício da atenção, ficamos com a sensibilidade à flor da pele”, afirma Iura, ele próprio um haicaísta de mão cheia de São Paulo. Esse estado de abertura a cada instante da vida o faz observar coisas simples e corriqueiras, como um bichano vira-latas no meio da rua:
Vento de inverno
o gato de olho vazado
procura seu dono.
“Jamais notaria esses detalhes e a própria beleza do mundo se não tivesse a atenção desperta pelo gosto de fazer haicais”, diz Iura.
É do Brasil
Todos os anos, brasileiros se reúnem num templo zen no bairro da Liberdade, em São Paulo, para presenciar a primeira lua de outono, reverenciada como grande fonte de inspiração para os poetas japoneses – se bem que em São Paulo nunca se sabe quando o céu vai estar visível. Mas isso não é problema. Para os haicaístas, tanto faz homenagear a lua ou a falta dela. Importa o momento presente, como diz Teruko Oda.
Quietude no templo
palavras pescam poemas
à espera da lua
No Brasil também existem concorridos grêmios haicaístas, até em cidades inesperadas como Manaus ou Santos. Nas reuniões, são lidos haicais feitos na hora, que recebem uma pontuação – o melhor é relido no final. Donas-de-casa, profissionais liberais, professores e estudantes fazem parte. Raros são os poetas – prova de que os haicais podem mesmo ser feitos por qualquer pessoa. Mas o veículo que irmana todos os haicaistas do Brasil – e do mundo – é mesmo a internet. Na rede, é possível encontrar livros em português, concursos nacionais e estaduais, artigos, entrevistas, listas de discussão, livrarias virtuais. Brasileiro gosta mesmo de um haicai, né?
Versos sazonais
Mas como nasceram os haicais? Pode-se dizer que eles surgiram da estreita sintonia que os japoneses têm com a natureza. Antigamente, no Japão, a cada mudança de estação, mudava-se o jogo de pratos que era servido à mesa, as pinturas e tecidos que faziam parte da decoração da casa, os quimonos das mulheres, os arranjos florais. As estações, com sua temperatura, pássaros, cores e flores característicos, entravam pelas grandes janelas e portas de correr da casa japonesa. O que estava dentro integrava-se ao que estava fora, no jardim. Foi assim, para testemunhar as variações da natureza durante o ano, que os haicais surgiram, por volta do século 15. Para quem quer acompanhar esses ciclos da natureza, há dicionários virtuais com flores, árvores, aves, cores e sentimentos peculiares de cada estação no Japão. O tom da natureza é tão importante no haicai que o verso ou a palavra que o descreve tem até nome: kigô. Mas se você acha esquisito que alguém tente viver o presente de uma realidade ausente, por meio de dicionários, fique à vontade para fazer adaptações. A professora de yoga Eleonora Marsiaj, por exemplo, não teve dúvidas em compor um haicai ao ver as flores de ipê tingirem o jardim da sua casa em São Paulo.
Tapete azulado
Flor de ipê roxo
Pingos cantantes.
Budista, ela aprendeu a fazer haicais como parte do seu treinamento espiritual. “Com a prática, eles já saem quase prontos. É como se a mente aprendesse a se expressar assim”, afirma Eleonora.
Hai-Millôr-Cai
No Brasil, o haicai não conquistou apenas anônimos que se contentam em trocar suas impressões em noites enluaradas ou em sites especializados. Muita gente famosa adotou os versinhos, lapidou pequenas jóias e as publicou. Desses, um dos maiores é Millôr Fernandes, cujos temas preferidos eram a vida e a morte. De 1968 a 1982, ele escreveu dezenas de haicais na revista Veja, muitos deles sobre a transitoriedade da existência, sempre com bom humor.
É meu conforto
da vida só me tiram
morto.
Como muitos haicais brasileiros, os de Millôr têm rima, uma inovação trazida pelo poeta Guilherme de Almeida, que nos anos 30 divulgou esse tipo de poesia no Brasil, com um detalhe: seus poemas tinham título, o que, para muita gente, tira bastante de sua graça. Apaixonado pela forma fotográfica e fragmentária desse tipo de poesia, o paranaense Paulo Leminski também criou nos anos 70 ousadas formas de expressão para os haicais. A produção atual conta com autores de fina delicadeza, como Olga Savary, Alice Ruiz, Alonso Alvarez, Teruko Oda, Eunice Arruda e dezenas e dezenas de outros poetas, desconhecidos na maioria. Mas fama e fortuna não importam para um haicaísta de verdade. Se você gostou mesmo dessa história de fazer haicais, não hesite em se juntar a essa turma.
Meu primeiro haicai
1. O haicai clássico tem três versos, dois com 5 sílabas e um (o do meio), com 7 sílabas. Mas muita gente ignora essa regra 2. O primeiro verso dá a cena geral, geralmente associada a uma estação ou algo que a simbolize 3. No segundo verso, algo acontece na cena geral: a rã pula, a criança acorda, a mulher soluça 4. O terceiro verso traz o sabor da experiência, numa síntese que traduz uma forte sensação. É o que tem mais impacto 5. É bom ter sempre à mão um caderno especial ou bloquinho para anotar seus haicais 6. Leia haicais de outros autores, treine bastante. Você irá se habituar a se expressar assim 7. Depois de dominar bem o jeito clássico, você pode criar suas próprias variações, sem obedecer regras muito fixas
Para saber mais
www.kakinet.com – site especializado www.paubrasil.com.br – livraria que possui uma seção só com livros do gênero Natureza – Berço do Hai-Kai, Kigologia e Antologia, H. Masuda Goga e Teruko Oda, Empresa Jornalística Diário Nippak Haicai, Antologia e História, Paulo Franchetti, Editora da Unicamp Sendas de Oku, Matsuo Bashô, Livros Raros Desorientais, Alice Ruiz, Iluminuras Haiku, R.H. Blyth, The Hokuseido Press
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil